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TONICO E TINOCO
A DUPLA CORAÇÃO DO BRASIL
“DA BEIRA DA TUIA AO TEATRO MUNICIPAL”
(EDITORA ÁTICA)  -  1984

 

TANTOS ANOS DE VIDA CANTANDO
O
NDE OS VERSOS SÃO DA MESMA CANÇÃO
N
OSSA VIDA FOI SEMPRE CANTANDO
I
MPORTÂNCIA DE UMA TRADIÇÃO
C
OM A PUREZA DAS FLORES DO CAMPO
O
RETRATO DO NOSSO SERTÃO

EM DEUS SEMPRE CONFIAMOS 

TRILHANDO O MESMO CAMINHO
I
RMANADOS NUM SÓ CORAÇÃO
N
OS QUARENTA ANOS CANTANDO
O
FERECENDO POESIA E CANÇÃO
C
OM A VIOLA, AMOR E CARINHO
O
EXEMPLO DA ETERNA UNIÃO.

 

MEIO SÉCULO CANTANDO JUNTOS


Por que um livro da vida?
Porque muitas coisas chegam e passam tão depressa que às vezes ficam meio despercebidas. Mas meio século poderia passar despercebido? Não! Por isso o testemunho fica num livro-documento, onde a dupla TONICO E TINOCO conta suas histórias e de sua família. Para nossos filhos, essa história parece uma lenda; eles acham engraçados certos trechos que até hoje a dupla relata. Mas notamos em seus semblantes a alegria – mesmo do recordar passagens tristes – como um estímulo, para aqueles que não começaram, e uma esperança, para aqueles que queiram desistir. Foram e são felizes. As dádivas divinas foram aproveitadas, e nada melhor do que aprender um pouco a maneira de ser destes fabulosos TONICO E TINOCO, lendo este livro cheio de surpresas.
                  Élcio Perez e José Caetano Erba.

 

MEIO SÉCULO CANTANDO JUNTOS


42 - FÉ
43 – TRABALHO
44 – SACRIFÍCIO
45 – LABUTA
46 – CARINHOS
47 – ESPERANÇA
48 – UNIÃO
49 – CERTEZA
50 – FORÇA
51 – FLORES
52 – LIBERDADE
53 – VIAGENS
54 – EXEMPLO
55 – SOLIDARIEDADE
56 – PERSISTÊNCIA
57 – INTELIGÊNCIA
58 – AGRADECIMENTO
59 – PACIÊNCIA
60 – DÁDIVA
61 – FRATERNIDADE
62 – SERENIDADE
63 – CONQUISTA
64 – CORAGEM
65 – CARIDADE
66 – CONSCIÊNCIA
67 – AMIGOS
68 – SABEDORIA
69 – CRIATIVIDADE
70 – PROSPERIDADE
71 – BÊNÇÃO
72 – ALEGRIA
73 – FELICIDADE
74 – COMPREENSÃO
75 – SEGURANÇA
76 – MENSAGEM
77 – PAZ
78 – AMOR
79 – HUMILDADE
80 – CORAGEM
81 – GRATIDÃO
82 – EXPERIÊNCIA
83 – GLÓRIA
84 – VITÓRIA

 

 

O LIVRO DA VIDA DE TONICO E TINOCO


Por que um livro da vida? Porque muitas coisas chegam e passam tão depressa que às vezes ficam meio despercebidas. Mas meio século poderia passar despercebido? Não!
Por isso o testemunho ficará escrito num livro-documento, onde a dupla TONICO E TINOCO conta sua história e de sua família. Para nossos filhos essa história parece uma lenda; eles acham engraçados certos trechos que até hoje a dupla relata. Mas notamos em seus semblantes a alegria – mesmo ao recordar passagens tristes – como um estímulo para aqueles que não começaram, e uma esperança para aqueles que queiram desistir.   
Puxa, meio século cantando juntos, sem egoísmo, orgulho, superando os altos e baixos da profissão. E quando aparecia uma dupla boa, sentiam que seriam concorrentes? Não, pelo contrário, estendiam a mão. Levavam aos shows.
Agradecidos pela vida, acompanham o progresso sem serem contagiados pela cidade grande, pisando nos palcos mais cobiçados deste país, nas telas dos principais cinemas, aparecendo nos programas de rádio e TV.
Este livro servirá também para dar ânimo àqueles que pensam que pouco podem realizar nesta vida. A vida sorriu para a dupla. Galgaram os difíceis primeiros degraus e o padrão de vida melhorou. O primeiro pensamento foi destinado aos pais. Uma casa própria, um sonho realizado. Chega de mudanças. Hoje, muito se discute sobre suas vidas particulares. Têm avião? São ricos, são fazendeiros, são comerciantes? São simplesmente dois seres humanos, cuja maior riqueza são suas vozes e suas músicas espalhadas por este mundo afora, com suas melodias singelas, descrevendo o sertão onde viveram e cresceram morando em casa de barro amassado, convivendo com a natureza, a enxada como símbolo do sertanejo. Através dela conseguiam o sustento da casa, as criações o rodiando, os grilos enfeitando a noite e as casas iluminadas com lamparinas.
Foram e são felizes. As dádivas divinas foram aproveitadas, e nada melhor do que aprender um pouco a maneira de ser destes fabulosos TONICO E TINOCO, lendo este livro cheio de surpresas.
                                               Élcio Perez
                                                       e       
                                               José Caetano Erba

 

 

“DA BEIRA DA TUIA AO TEATRO MUNICIPAL”
DESCENDÊNCIA


Tonico: - Meu nome (Tonico) é João Salvado Perez, nascido em 2 de março de 1917 na cidade paulista de São Manuel. José Perez, o Tinoco, nasceu em 19 de novembro de 1920.
Salvador Perez, nosso pai, era espanhol da Província de León e veio ao Brasil na imigração de 1892. Tinha então cinco anos de idade, e foi morar na região de Botucatu junto com os pais, Nicolau Perez e Rosalina Folgueiraz. Trabalhando na lavoura, desbravando o sertão, formando fazendas: assim cresceu e viveu nosso pai.
O nome de nossa mãe é Maria do Carmo. Nossos avós maternos, Olegário Henrique e dona Isabel de Toledo, eram bem brasileiros, descendentes de negros com bugres. Tinham seis filhos: Benedita, Rita, Ana, José, Paulo e Maria do Carmo. Era uma raça tão forte, que tia Gertrudes, irmã de vovó, viveu 120 anos. Participou do centenário de Botucatu, cidade que viu nascer.
A família de nossa mãe era muito divertida. O avô Olegário era o mais famoso tocador de sanfona de oito baixos da região, e por isso muito solicitado para os bailes, tocando desde a noitinha até as dez horas do dia seguinte. E quando ele cansava, a vovó pegava a sanfona e continuava com os festejos. Nossos avós contavam que, quando eram convidados para o baile de sábado, na sexta-feira já fechavam os cavalos no piquete, um pastinho ao redor da casa, para facilitar o preparo dos animais para a viagem. A sanfoninha seguia amarrada na garupa, e, ao chegar ao local, eram recebidos com festas e fogos.
Os bailes em que nossos avós tocavam eram muito animados. Naquela época a condução de luxo era o trole ou o semitrole. O trole levava quatro pessoas e o semitrole era para duas, sendo que este último era mais usado pelos fazendeiros. O casamento daquele tempo era feito na cidade, e os noivos, padrinhos e convidados seguiam a pé ou a cavalo.
A avó Isabel sempre contava histórias daquele tempo. Disse que certa vez foi ao casamento de uma amiga e andou mais de dez léguas a cavalo. Os noivos viajaram mais de oito horas, e, quando chegaram à igreja do arraial, estavam empoeirados, até a grinalda da noiva tinha saído do lugar com o trote do cavalo. Na hora da cerimônia, o padre fez a pergunta de praxe: “É de sua livre e espontânea vontade casar com fulano?” A noiva, toda amarrotada e cansada respondeu, respondeu: “Mas é claro que é, se não gostasse dele não tinha vindo de tão longe e de pernas abertas, montada a cavalo!” Enfim, casaram e voltaram só no dia seguinte. Teve tanta festa que até esqueceram o tranco do cavalo.

O CASAMENTO DE NOSSOS PAIS


Tinoco:
- As famílias de nossos avós moravam no Município de São Manuel, na Fazenda Vicente Soares, propriedade da família Barros. Ali nossos pais cresceram, namoraram e casaram. O casamento foi realizado em 1914.
É muito engraçado nossa mãe contar do namoro. Seus pais acertaram tudo. Os noivos mal se conheciam e já marcaram o dia do casamento, que foi realizado na cidade de São Manuel, seis horas a cavalo. Depois, fizeram uma grande festa, mas o casal só tinha a casa. Faltava a mobília. Então, eles providenciaram uns cavaletes e um colchão de palha de milho para formar a cama. O pai tinha conhecimentos de marcenaria e fabricou a mesa e os banquinhos de três pernas, chamados tripeças. O guarda-roupa e a prateleira eram uma peça só.
Naquela época, o pai trabalhava de cocheiro e pajem do saudoso Ademar de Barros, que lhe contava muitas histórias de sua infância. Depois do casamento resolveu ir trabalhar na lavoura de café. Na época, São Manuel e Botucatu formavam uma grande zona cafeeira. Hoje a região está tomada pela lavoura de cana.
Nossos pais, juntos, tomavam conta de 4000 pés de café. Ganhavam trinta mil-réis para cuidar de mil pés, totalizando 120 mil-réis por ano. Em julho ou agosto faziam a ruação (limpeza embaixo dos pés de café. Os grãos que vão caindo vão sendo amontoados nesse espaço limpo, para depois serem peneirados e ensacados), colhiam e ensacavam os grãos em sacas de sessenta litros. O produto era deixado na beira do carreador (a estrada no meio do cafezal) para ser recolhido pelo carro de boi e levado ao terreiro para secar, até o ponto de ser beneficiado. Em outubro estava terminado o ano agrícola. O patrão fazia o acerto geral; as despesas na venda também eram acertadas nesse
momento. A banda ou o traseiro de um porco custavam setecentos réis, o saco de feijão saía por quinhentos. Isso em 1915.

NOSSOS PAIS NA COLÔNIA


Tonico:
- Nossos pais eram acordados pelo toque do sino da colônia. Às 4 horas o fiscal tocava a alvorada. Batia o sino por quinze minutos. Então os colonos e camaradas levantavam e se preparavam para a saída.
Quando clareava o dia, todos partiam para a roça. Já se escutava o segundo toque do sino, e ninguém podia se atrasar. Se o sino dava três badaladas, todos continuavam o serviço do dia anterior. Se eram quatro badaladas, o responsável de cada família se dirigia à sede da fazenda para receber novas ordens. Por exemplo: se no dia anterior estavam todos capinando a roça, nesse dia paravam e iam limpar o cafezal. Isto estava no contrato de cada colono.
Quando trabalhava em serviços extras, para benfeitoria da fazenda, o colono recebia por dia quinhentos réis a seco, quer dizer, sem comida. O horário de serviço era de sol a sol, trabalhando quatorze horas por dia. No cafezal não se podia plantar nada sem a ordem do fazendeiro, pois a plantação de milho ou feijão atrapalhava a colheita do café. Então, cada colono tinha o seu pedaço de terra para plantar o que quisesse. Os colonos pagavam tudo: o carreto para o transporte de lenha para casa, carreto de milho de sua casa para o paiol. Dinheiro adiantado. Às vezes o colono era obrigado a vender os produtos que colhia durante o ano e sua criação, para saldar dívidas suas com a fazenda. Mas nossos pais nunca perdiam as esperanças. O ano seguinte seria sempre melhor.
A maior parte dos colonos eram imigrantes espanhóis e italianos. Chegavam de navio nos portos brasileiros, de onde os fazendeiros os levavam para contratá-los e ensinar os serviços. Mas os fazendeiros também aprendiam muito, pois os imigrantes traziam conhecimentos e os aplicavam aqui. Eles ajudaram a fazer a grandeza do nosso Brasil, e por isso devemos muita gratidão a esses povos do mundo inteiro.

O NASCIMENTO DE TONICO E TINOCO


Tonico:
- Foi na fazenda da família Barros que nasceu nosso irmão mais velho, Jesus, falecido com dois anos de idade. Depois dele vieram João (Tonico), Carmem (falecida), José (Tinoco), Rosalina, Aparecida, Antônia, Laurinda (falecida) e Chiquinho. Esta é a família Perez. Quando Tinoco nasceu, nós morávamos no Guarantã, Município de Botucatu.
Tinoco: - Tonico foi criado pela avó Isabel até a idade de sete anos, junto com a tia Rita e o saudoso tio José, um dos maiores sanfoneiros da região. Aliás, dá para observar que todos na família de nossa mãe eram músicos por intuição.
Depois de algum tempo, nossa família também passou a residir na Fazenda Vargem Grande, do seu Petraca Bachi, que tinha uma indústria de bebidas em Botucatu.
Tonico: - Nessa fazenda conhecemos o violeiro Virgílio de Sousa, e também a primeira viola, fabricada por ele mesmo, com cravelha de pau. Era muito difícil a afinação, porque as tarraxas não seguravam as cordas. Quando conseguia a afinação, o violeiro molhava a cravelha com saliva, para a viola não voltar a desafinar.
Naquele tempo nós sentíamos o som da viola dentro do peito e cantávamos junto com o seu Virgílio a moda “O Casamento do Véio” que era sucesso na região: “Namorei uma menina,/ bonitinha e tão faceira,/ do dentinho arrepiado./ A danada é ‘matadeira’./ Pedi a moça em casamento,/ a moça ficou ‘banzara’ (brava, zangada). A moça responde: “Preciso me casá/ porque ainda sou solteira,/ mas quero casá com moço/ não véio dessa maneira./ Serve pra puxá carroça/ carregada de madeira;/ o meu pai com uma jibóia/ proveitá a força inteira”. O velho responde: “Tô vendo que hoje em dia/ que os véio não tem carreira./ Regacei as minhas calça/ esparramei o pé na poeira...” E assim por diante.
A especialidade do seu Virgílio, como violeiro, eram modas humorísticas, criticando as coisas erradas. Por exemplo, se um casal namorava no escuro, no outro dia a moda estava pronta com todos os detalhes. Existiam outros violeiros, como o seu Gregório Agapé, de modas verídicas como “Sertão do Laranjinha”. Gregório era parente da família de Francisco Neves, que foi morto pelos índios no sertão do Laranjinha, hoje a linda cidade de Ribeirão do Pinhal (PR).
Na Fazenda Vargem Grande, papai era retireiro (indivíduo que, num retiro, guarda um certo número de cabeças de gado). Tomava conta de mais ou menos duzentas vacas leiteiras. Ficamos por cinco anos nesse retiro, sem vizinhos, pois o mais próximo ficava a três léguas. Cantávamos apenas modas do seu Virgílio, o violeiro mais popular daquela época. Fomos criados sozinhos, e quando chegavam visitas em casa ficávamos espiando pelas frestas da porta, depois passávamos correndo em frente dos visitantes. Quando o pessoal ia embora era aquela surra de vara de marmelo, até que compreendíamos a explicação de nossa mãe: quando se tem visitas em casa, é falta de educação passar em frente correndo.

NA ESCOLA

Tonico: - Mudamos para a sede da fazenda, onde conhecemos a luz elétrica. Até então nós só conhecíamos o lampião ou a lamparina de querosene. Ali na sede funcionava a escolinha rural, onde aprendemos o bê-a-bá. Era a Escola Mista Rural do Guarantã, onde lecionavam os professores Camargo e Isabel. Nosso horário era das oito às onze da manhã, depois almoçávamos em casa e partíamos para ajudar nosso pai na roça. No caminho de volta da escola, sempre achávamos um pretexto para chegar tarde em casa, para não ir à roça. Um dia nosso pai desconfiou e determinou: da escola direto pra roça. Assim acabou com a nossa alegria, porque se chegássemos tarde não tinha almoço, só trabalho pela frente. Tinoco não era amigo do batente e pegava a enxada de cabo bem comprido, pois, dizia ele, assim ficava mais longe do serviço.
Nessa época eu estava com doze anos e Tinoco com oito. O lanche da escola era um vidrinho de café e um pedaço de pão. Quando nossa mãe colocava um ovo mexido junto com o pão, o Tinoco não tinha paciência de esperar até a hora do recreio. Ia beliscando e acabava comendo tudo.
Tinoco: - Ficamos dois anos naquela escola. Tonico passou para o segundo ano lendo o livro de João Koke. Muita gente deve se lembrar ainda desse livro escolar.
Tonico: - Tinoco só aprendeu o caminho da escola e conseguiu ler apenas a Cartilha da infância, que era o a-e-i-o-u. Seu pensamento sempre estava voltado para as peraltices e as arapucas armadas no caminho da roça.
Perto da escola tinha a venda do seu Mariotto, o qual teve o capricho de guardar o nosso primeiro banco escolar. A primeira escola nunca sai de nossa recordação. Lembramos até o hino que cantávamos no encerramento da aula: “Escolinha modesta da roça,/ rodeada de pés de café,/ o Brasil levanta e remoça/ numa nova alvorada de fé./ A criançada toda contente/ e vamos todos estudar./ É o Brasil que vai pra frente,/ bendita Escola Rural”.

AS PRIMEIRAS ROUPAS NOVAS


Tonico:
- Em 1931, mudamos da Fazenda Vargem Grande para o sítio de dona Chelia, no coração do Guarantã. Um dos proprietários, o seu Ricieri Moratelli, era irmão de Orlando Moratelli, vulgo Tozoni, o maior jogador de futebol daquela época em São Manuel. Seria o Pelé daquele tempo. Só que o futebol não era assim tão divulgado como nos dias de hoje e tudo passou despercebido.
Nesse sítio fomos contratados para capinar 12000 pés de café e trabalhamos dois anos ali. Depois mudamos para outro sítio, do seu Artur Forte, onde tratávamos de 14000 pés de café, ganhando 140 mil-réis por mês. Nossa vida em relação ao passado já estava melhorando um pouco – até então não tínhamos recursos nem para cortar o cabelo na barbearia: era nossa mãe quem cortava.
Em fins de 1933 sobrou um dinheirinho para comprar roupas novas para a família inteira. Brim colonial. Um pano grosso, escuro, com listas brancas. A mãe fez as roupas para todos com o mesmo tecido. A família Perez ficou mais conhecida pelo padrão do tecido, mas não dávamos a mínima para quem reparasse, o que importava era que estávamos com roupas novas. O tênis que usávamos era conhecido por sampião. Até essa data, calçávamos somente botinas usadas dos filhos dos colonos mais abastados.
Naquela época, nosso pai também era cozinheiro de casamentos. Foi convidado para organizar uma festa de casório da filha dos Blazão, os sitiantes mais conceituados da região. Toda família de roupa nova no baile. Tinoco dançou a noite inteira com as meninas, descalço, com o sampião amarrado no pescoço, para não gastar logo. Nesse tempo já cantávamos, sem viola, alegrando as festas da região.

TONICO E TINOCO, COROINHAS DA IGREJA

Tonico: - Nessa época éramos coroinhas do padre Libório, da igreja Santo Antônio, padroeiro do Arraial do Guarantã. Que saudade! Depois da missa íamos à casa do padre e tomávamos café com leite e pão com manteiga (até então conhecíamos manteiga só pelo nome). Enquanto estávamos ajudando o padre, nosso pensamento estava no lanche. Mas não ficamos muito tempo nesse cobiçado cargo: o padre estava sempre repreendendo o Tinoco, que vivia fazendo das suas. Às vezes ele até dava um jeitinho de beber o vinho do padre. No último domingo de cada mês era a missa especial, e numa dessas o Tinoco apareceu com suas vestes de coroinha e o estilingue pendurado no pescoço. O padre ficou furioso e nos dispensou do cargo. Nossa mãe ficou doente de tristeza, pois era seu orgulho perante os vizinhos comentar sobre os seus filhos que, além de cristãos, eram também coroinhas da igreja.

A PRIMEIRA VIOLINHA


Tinoco:
- Tínhamos como vizinhos uma família de bugres, inimigos número um do trabalho, que viviam da venda de badulaques que eles mesmos fabricavam. Nossa primeira violinha, feita a canivete, foi comprada desses índios por nosso pai.
Aprendemos a afinar a violinha por intuição e por algumas orientações dos violeiros Chico Canhoteiro, Didi, Dito Severino e Nhô Pacheco. Só cantávamos romances, modas que tinham a duração de três a quatro horas. Assim aprendemos a afinação “cebolinha”, assim como a oficial, que todos os violeiros de hoje usam – a afinação da viola no “cebolão”.
Um belo dia, nossa mãe fazendo café, preparamos uma grande surpresa: subimos na taipa do fogão a lenha, riscamos a violinha feita a canivete (que para nós representava um instrumento divino) e cantamos estes versinhos: “Estimo esta violinha,/ riqueza do meu sertão;/ alegra nossa mãezinha,/ riqueza do coração”.
Mamãe ficou muito comovida ouvindo a gente cantar, relembrando coisas como: “Veja só, como o tempo passa, parece que foi ontem, vocês eram todos pequenos...” Lembrou quando, aos sábados, nós íamos para Faxinal na casa da tia Dita, enquanto nosso pai ia ao Guarantã “breganhar” cavalo, onde sempre levou desvantagem. Éramos levados pelo Estrelo, um cavalo velho, crioulo, considerado um membro da família, pois só faltava falar. Um dia o Estrelo morreu atolado num brejo, apenas restando os arreios como lembrança. Nossa mãe relembrava tudo isso e, para disfarçar a tristeza, falou: “Vocês cantam bonito, e tenho certeza que vocês vão dar alegria a muita gente por este mundo afora. Vão ser grandes cantadores.”

MUDANÇA PARA A FAZENDA CINTRA


Tinoco:
- Mudamos para a Fazenda Cintra, Município de Botucatu. Estávamos sempre mudando de fazenda. O pai falava: “Vamos procurar onde se ganha mais, que é para vocês terem um futuro melhor”, e assim, de fazenda em fazenda, fomos crescendo, trabalhando e cantando.
A Fazenda Cintra era uma das maiores em plantações de café. Contava com meio milhão de pés, cinqüenta famílias de colonos, mais de cem camaradas avulsos. Para o transporte eram utilizados o carro de boi, a carroça e o trole-carro. Eram pouquíssimos os que possuíam os fordinhos 27-29, pois nem havia estradas para automóveis: eram só vias municipais, todas esburacadas, por onde só passavam carroças e cavalos. De Botucatu a São Manuel a viagem de carro durava de quatro a cinco horas, e a estradinha atravessava as fazendas Barra Mansa, Cintra, do Barrinho, do Costa, Estevam Ferraz, Igualdade e São Manuel. Na época já existia o projeto da rodovia Raposo Tavares.

MUDANÇA PARA A FAZENDA TAVARES


Tonico: - Mudamos para a Fazenda Tavares, também no Município de Botucatu, e nessa época surgiu a valsa “Aurora”, de Canhoto, e muitas outras do mesmo autor. Um colono da fazenda chamado Bonifácio Bonetti, o maior violonista do lugar, reviveu o repertório de Canhoto na região. Bonifácio foi nosso professor, ensinando-nos os primeiros acordes do violão.
Então já fazíamos nossas primeiras serenatinhas, alegrando as festas de São João, com as colônias enfeitadas de bandeirinhas, juntamente com o cipó de São João, as florezinhas vermelhas, os bailes ao redor das fogueiras. Comíamos batata-doce assada na brasa, pamonha, milho verde e bebíamos quentão. O Chico Fogueteiro era o responsável pelos estrondos das ronqueiras (cano grosso com um pavio numa das extremidades. Pela outra ponta se punha pólvora e terra. Acendia-se o pavio e a ronqueira soltava estrondos, como os rojões de São João). As procissões da meia-noite e de após o terço iam lavar o santo no riozinho; grupos de rezadores entoavam hinos em louvor quando baixavam a imagem do santo nas águas. As moças olhavam para o fundo do rio pelo clarão da vela, para ver se aparecia a imagem do rapaz com quem estariam casadas no outro São João. Depois de terminados os rituais, traziam a imagem do santo para a casa do festeiro, faziam suas rezas de despedida e voltavam no impalizado (terreiro improvisadamente coberto de lona ou palha para a realização de festas ou bailes na roça), para dançarem até o raiar do dia.
Os moços trabalhavam o ano inteiro para fazer bonito, nessas ocasiões, perante as caboclinhas. Estas, com seus vestidos de chita, dançavam com os pés descalços e florezinhas no cabelo, cheirando brilhantina, com esperança de arrumar namorado. Tinham fé em suas rezas e pedidos a São João.

FESTA DE SÃO JOSÉ


Tinoco:
- A festa de São José transcorria no Arraial de Toledo, onde nós cantávamos nossas modas de viola e onde se apresentava uma bandinha, num coreto escorado de lado para não cair, povoado de marimbondos. Cada prenda que o pessoal arrematava era comemorada com um dobrado executado pela bandinha do arraial, sob a batuta do maestro Sabugueiro. De vez em quando um dos músicos era picado por uma abelha. Ele parava de tocar para se defender do marimbondo, e então toda a desafinadíssima bandinha acabava parando. O maestro Sabugueiro decretou uma ordem: só pode parar aquele que for picado por uma abelha, os outros seguem tocando. Dizia o maestro: “Não será por causa de um soldado que a guerra vai parar”. E todos os músicos obedeceram.
Nós, já mocinhos, recebemos permissão do pai para freqüentar alguns bailes fora da colônia. Fomos então a uma festa na Pratinha, um povoado bem distante, onde morava o tio Paulo, tocador de sanfona de oito baixos. Foi ele que promoveu essa grande festa, e lá assistimos pela primeira vez à dança de São Gonçalo, com seus rituais e versinhos.

NOSSAS PRIMEIRAS CALÇAS COMPRIDAS


Tonico
: - Nós usávamos calças curtas, com suspensório fixo do mesmo pano, chamado tiraca. Uma vez, quando fomos nos aprontar para ir a uma festa, tivemos uma grande surpresa. Encontramos calças compridas, cintos de couro cru, umas botinas vermelhas de elástico (a popular testa-de-touro) e duas ceroulas de algodão colonial. Tudo feito pela nossa mãe, que falou: “Como é, vocês não vão trocar de roupa pra ir na festa do tio Paulo? As roupas são aquelas que estão em cima do baú. De hoje em diante vocês vão usar calças compridas e ceroulas. As roupas de menino vão ficar para o Chiquinho”.
Quando vestimos nossa nova roupa sentimos uma emoção muito grande, e ao mesmo tempo a responsabilidade de ser homem. Tudo parecia um sonho.

ORDEM DO PAI PARA FUMAR


Tonico:
- Fumávamos escondidos, sem ordem do pai. Mas já estávamos mocinhos, com calças compridas, chapéu novo, bem “encanoado”. Então, na hora de seguirmos para a festa, quando fomos tomar sua bênção, nosso pai nos chamou e entregou um pedaço de fumo de corda, uma faquinha e a palha. E nos falou: “De hoje em diante vocês têm minha permissão para fumar. Mas tem uma coisa: se vocês fumarem na minha frente ou na frente dos mais velhos, já sabem, faço engolir o cigarro”.
Com todas as recomendações de  nossa mãe, botamos o pé na estrada e só depois de uma grande caminhada chegamos à Pratinha, na festa do tio Paulo. Ele levou um grande susto quando nos viu sós e com aqueles trajes, e nos disse: “Mas vocês já estão ficando homens, agora só falta casar!” Com muita emoção abraçamos nossos primos José, João, Olegário, a Dita e a tia Nefa, que nos abençoou e disse: “Até ontem vocês dois eram deste tamanhinho, e hoje já são homens feitos!”.

A FESTA DO TIO PAULO


Tonico:
- Estávamos na casa do tio Paulo, na preparação da festa de São Gonçalo, e a tia Nefa estava terminando de preparar o altar com muitas imagens. Cada santo com sua missão. A tia arrumava cada um no seu altar e explicava: “Olha, meus filhos, este santo cinzento de batinha escura é São Brás, protetor dos engasgados, e este outro barbudinho é São Crispim, muito milagroso, protetor dos granjeiros. Ele livra do ladrão que vem roubar galinhas. O mulatinho é o Santo Onofre, protetor dos cachaceiros, livra dos tombos e das quedas. Este é o Santo Antônio, o santo casamenteiro. Ele anda muito aborrecido com os jovens, pois ninguém mais o consulta para os pedidos de casamento, nem faz orações. E, quando faz, quer ser atendido com urgência, senão enterra o pobre coitado de cabeça pra baixo. É por isso que há muitos casamentos desfeitos, falta de paciência e de amor”.
E assim tia Nefa terminou de arrumar, contando a história de cada santo. No centro do altar o titular da festa, São Gonçalo, protetor dos violeiros. Terminou como todos os enfeites, já no fim da tarde, quando os convidados de cidades e locais distantes já vinham chegando. Também vieram os “bicões” – que não faltam em festas -, os violeiros com as violas na garupa e, já à noitinha, a comitiva dos rezadores que, ao escurecer, começavam o terço.
O rezador ajoelhava-se na frente do altar improvisado e, de acordo com o ritual, fazia o sinal-da-cruz e rezava um rosário inteiro. Aí o rezador dividia seu pessoal, para responder às ave-marias e santa-marias. Após o terço vinham o café, os lanches e bebidas, iniciando-se os festejos. A festa ia até o raiar do dia. Quem gostava, apreciava o catira feito junto do altar.

A PRIMEIRA VEZ QUE CANTAMOS NA FESTA DE SÃO GONÇALO


Tinoco:
- Estávamos apreciando a dança de São Gonçalo, quando tio Paulo nos falou: “Entrem na dança, vão acompanhando os outros, e quando passarem na frente do altar cantem seus versinhos no ritmo da viola, e voltem na outra fila sem virar de costas para o santo. Cantem com bastante fé para serem abençoados por São Gonçalo, o protetor dos violeiros”. Quando entramos na dança foi outra emoção, cantando os versinhos do ritual: “Ora viva São Gonçalo,/ São Gonçalo do Amarante,/ abençoai os violeiros/ e os devotos confiantes./ Ora viva São Gonçalo, protetor dos cantador,/ abençoai a nossa gente/ e todos rezador./ Ora viva São Gonçalo,/ protetor dos violeiro,/ levando sua mensagem,/ cantando pro mundo inteiro”.
Ao terminarmos de cantar sentimos a bênção do santo, e os violeiros quase pararam a dança para nos cumprimentar, coisa que nunca havia acontecido. Tio Paulo profetizou: “Vocês vão ser, de fato, grandes violeiros, com essas vozes afinadas, que mais parecem o trinar de dois passarinhos”.
Essa foi a primeira vez que cantamos numa festa. No outro dia só se falava nos dois irmãos Perez. O pai ficou logo sabendo do sucesso, mas não deu demonstração. E assim fomos crescendo, sempre cantando e trabalhando, ajudando o pai na roça e ponteando a violinha feita a canivete.
O bojo da viola tinha um formato de cupim de camelo, som de goteira e não afinava nem por misericórdia, mas era compensada pelo dueto das vozes, que retinia por aquele sertão afora. Na intimidade da família tínhamos os apelidos de Nego e Tico. Agora, morávamos na fazenda do Deca de Barros, em São Manuel, onde ficamos conhecidos como famosos cantadores e nosso pai como famoso benzedor.

NOSSO PAI BENZEDOR


Tinoco:
- Na Fazenda Deca de Barros o pai era diarista, e trabalhávamos todos na roça. Ele, além disso, ficou muito conhecido como benzedor era muito procurado por todos. Vinha gente de longe em busca de um benzimento do pai, que era tiro e queda. Coqueluche na criançada, mordida de cobra, pisadura de animais, curava até gado envenenado. Foi também parteiro, pois não tinha médico na fazenda. Nosso pai era o doutor da roça.
Nessa ocasião deu epidemia de papo. Eram tantas pessoas papudas que apareciam: crianças, velhos, moços, todos de pescoço grosso, uma doença tão desajeitada. O pai benzia com uma fitinha do Divino e em três sextas-feiras o papo sumia. Devido à grande fé que o pessoal depositava em nosso pai, não havia papo que agüentasse o benzimento do velho.

BANDEIREIROS DO DIVINO


Tonico:
- As festas de Congada e Folia de Reis têm quase o mesmo ritual. Concentram-se mais nas regiões de Tietê, sul de Minas, oeste de Goiás. Os bandeireiros eram nomeados por uma irmandade, para angariar fundos
para a festa. Saíam para peregrinações, a cumprir promessas, carregando a bandeira do Divino. Essa bandeira e um bastão de mais ou menos um metro e meio, na ponta tem uma redoma coroando uma pombinha branca que simboliza o Divino Espírito Santo, com diversas fitas enfeitando a redoma, e um manto azul.
Os bandeireiros tinham que fazer suas peregrinações sempre a pé, descalços ou somente com chinelos. Eram verdadeiros ermitões, muito respeitados pela população. Quando um bandeireiro chegava a uma fazenda à tardinha, todas as famílias já ficavam esperando para ver qual a casa era escolhida pelo dom do Divino.
Certa ocasião, depois de percorrer toda a colônia, o bandeireiro parou em frente de nossa casa cantando exatamente estes versinhos: “Foi o Senhor que escolheu/ sua casa abençoada./ É o Divino Espírito Santo/ que vem pedir uma pousada./ O senhor dono da casa,/ venho lhe pedir guarida./ Um cantinho pra pousada/ e um prato de comida”.
Conforme o costume, o dono da casa fazia sua oferta e depois, com todo respeito, mandava o bandeireiro entrar. A dona da casa fazia o sinal-da-cruz, pegava a bandeira do Divino e percorria toda a casa fazendo seus pedidos em orações, para si e para seus filhos, parentes, amigos. Pedia saúde e a bênção para o bem-estar de todos, dirigindo-se à pombinha que, naquela hora, era o Divino Espírito Santo, aquele que anunciou à Virgem Maria o nascimento de Jesus. Enquanto a dona da casa fazia as orações, o dono da casa improvisava o altar.
O bandeireiro, geralmente, sabia cantar, contar histórias e tocar viola. Durante quase a noite toda, os fiéis faziam suas visitas e orações, deixando uma ajuda e trocando objetos por dinheiro. O bandeireiro recebia ofertas como ovos, frangos, leitoas e, conforme a promessa, havia quem oferecesse ao Divino cavalos, que depois eram vendidos. Os objetos comprados ficavam como verdadeiros símbolos sagrados. Todo mundo queria alguma lembrancinha do Divino, uma fitinha etc. Dava muita sorte.
No outro dia o bandeireiro se despedia, deixando saudade no coração dos sertanejos, muita paz e muita fé em Deus, e seguia para outras regiões cumprindo sua missão.
Para nós aquela noite jamais será esquecida.

TINOCO QUERIA CASAR


Tonico:
- Nessa época era tudo um mar de rosas. Era a fase de passarmos de meninos para mocinhos, calças curtas para compridas, o pomo-de-adão apontando nos gorgomilos, espinhas no rosto. Despontava o conhecimento do sexo, pois até então nós acreditávamos na cegonha, que ela trazia os nossos irmãozinhos para casa. Tudo em nossa vida, a partir daí, se modificou por completo.
Na dupla, quem fazia a primeira voz era eu (Tonico). Aí a voz engrossou, e passei a fazer a segunda até hoje.
O Tinoco tinha catorze anos e queria se casar com uma espanholinha chamada Dulce. Quase fugiram, mas o pai descobriu a intenção e o Tinoco apanhou na frente da namorada.
Foi o fim do romance.

TONICO, O PROFESSOR


Tinoco:
- Na Fazenda Deca de Barros havia mais ou menos umas trezentas crianças na idade de oito a dezesseis anos, umas cinqüenta moças e uns setenta rapazes. Não havia escola e o Tonico, com o segundo ano primário, deu aula noturna. Ensinou a todas as crianças e também aos irmãos, inclusive eu.
A nossa casa tinha doze cômodos, e um deles servia de classe. O administrador mandou fazer uns bancos grandes, de peroba, onde cabiam uns 25 alunos. Estudávamos primeiro o bê-a-bá, depois passávamos para o livro de João Koke. Tonico ensinava também as quatro operações e a escrever cartas. Depois o pessoal recebia o diploma e dava lugar para outros.
A mensalidade era de quinhentos réis e um litro de querosene, para a iluminação da lamparina. Às quintas-feiras não tinha aula. Era o dia do ensaio do nosso conjunto musical, o Deca de Barros.
O conjunto era formado pelos seguintes músicos: Tonico, no violão, eu (Tinoco), no cavaquinho, Chiquinho, no reco-reco, nosso primo Miguel, na sanfona, Teixeira, no pandeiro, e Manolo, na violinha, sempre tocando um repertório exclusivo do grupo. No coral estavam nossas irmãs Rosalina e Carmem, as primas Gertrudes, Isabel, Rosa, Faustina, Maria e Ditinha, e mais duas moças.
Não havia rádio na fazenda: fazíamos as músicas e arranjos e, com algumas apresentações, já estávamos populares em toda a região. Isso porque os outros grupos das fazendas vizinhas nada criavam, tocando nos bailes sempre as mesmas músicas, tais como, “Cana-Verde”, “Casinha de Bambuê (espécie de taboa utilizada para cobrir os ranchos, no lugar de sapé)”, “Nega” e “Dois Morenos”. Nós, ao contrário, sempre aparecíamos com músicas novas. Fizemos, na época, uma marchinha em homenagem à moça mais bonita da fazenda – “Moreninha” – que liderou e foi sucesso durante muitos anos. O nosso conjunto era o mais solicitado e o mais cotado pois, além de mais bem afinado, contava com dez moças no coral. E o mais curioso: todos da mesma família.
Cantávamos em dupla somente nas horas vagas ou nas folgas dos bailes e, algumas vezes, quando a turma parava para tomar café. Nessas ocasiões cantávamos modas como “Sertão do Laranjinha” e “Jorginho do Sertão”; esta última, sempre muito solicitada e que falava da crise, dizia mais ou menos assim: "“ crise bateu aqui na nossa terra./ Fazendeiro grita e os colonos berra./ A vida do pobre é uma judiação,/ come com gordura e lava com sabão”.
Nessa época de crise, nos anos de 1932 e 1933, apesar de o Tonico ter uma liderança na região – por ser professor, rezador e chefe de conjunto – ele andava de baixo astral em matéria de amor, ao contrário do que ocorria comigo: as mocinhas até brigavam para me namorar. Certa feita, achei um chapéu de maquinista nos trilhos da Sorocabana e pude desfilar com muito charme, pois ninguém tinha um parecido.

O TIME DE FUTEBOL


Tonico:
- Vivemos durante quatro anos na Fazenda Deca de Barros, período em que formamos um time de futebol – o “Deca Futebol Clube” – o mais famoso de toda a redondeza. Vejam só os craques: a família Furlan, onde todos os irmãos eram jogadores: João, goleiro, conhecido como goal-keeper; Tico e Alfredo, beques de espera e de avanço; Antônio; Centenário; José, ponta-esquerda e Santo Furlan, na ponta-direita. Tinha ainda o Júlio Vieira no centro, eu na meia-esquerda, Tinoco no juvenil (era bola-de-meia), tio Paulão, extrema direita – chamada de ala larga esquerda – e muitos outros jogadores, como o Chico Canhoteiro, o Carreiro (que sempre jogava descalço), o Didi, o Chico Severino e Claudino, o nosso Pelé da época.
Nas regras do jogo valia tudo: desde o pontapé até cama-de-gato. Era difícil a peleja não terminar em pancadaria. Mas, no final do jogo, tudo voltava às boas: aquela amizade sincera continuava.

TONICO CONSEGUE UMA NAMORADA


Tonico:
- Naquela época, para assuntos de namoro, serenata era o cachimbo da paz. Eu tinha conseguido uma namorada – uma italianinha de nome Joana Bortolete – porém seu pai, um italiano desbocado, não queria o namoro. Para que eu conquistasse a simpatia dele, Joana me disse: “Como você tem uma bela voz, faça uma serenata para ele”.
Incentivado pela idéia, programei a serenata e, logo após as luzes se apagarem, cheguei lá e cantei “Noite cheia de estrelas”. As luzes continuaram apagadas, então cantei outra canção: “Perdão, Emília”, do Paraguaçu. Ninguém aparecia na janela, mas de repente surgiu o velho com dois cachorros bravos e foi o fim da serenata.
Daí em diante, o pai da italianinha proibiu definitivamente o nosso namoro. Então, namorávamos por carta e a nossa caixa postal era um buraco de tatu na trilha da bica. Na Semana Santa, contudo, deu certo um encontro nosso. Reunimos toda a rapaziada e fomos até São Manuel, distante dezessete quilômetros, para assistir a procissão de Sexta-Feira Santa. No caminho, íamos com as botinas nas costas para só colocá-las na entrada da cidade.
Quando pegamos a estrada, minha maior emoção foi pegar na mão de Joana. Então, ela pediu que eu levasse os seus sapatos e, no caminho, paramos num lugar chamado Água da Rosa, onde lavamos os pés. Depois, subimos a rua do Comércio – sempre de mãos dadas – em direção à matriz, lugar em que os fiéis se acotovelavam, assistindo à missa e esperando a saída da procissão.
A Semana Santa da época era diferente da de hoje: o povo ia à igreja ouvir as palavras evangélicas, os sermões do padre e seus conselhos. Altares cobertos com pano roxo, as palavras emotivas do padre fazendo com que os fiéis refletissem e se arrependessem de seus pecados. Na procissão, as senhoras vestidas de preto, os véus cobrindo os rostos, buscando a imagem do Senhor. As Filhas de Maria iam com seus vestidos brancos e fita azul na cintura, e as criancinhas com roupinhas de anjo. Quando chegava o Sábado de Aleluia, muitos casamentos, bailes e as crianças cantavam: “Aleluia, Aleluia/ Farinha no prato/ Torresmo na cuia”.

TINOCO E TEIXEIRA, DOIS FOFOQUEIROS


Tonico:
- Tinoco e seu amigo Teixeira, ambos da mesma idade, eram os reis da fofoca: tudo o que acontecia na fazenda, os dois eram culpados. Um colono, seu Desidério – homenzarão de mais ou menos dois metros de altura – casou-se com Isabel, uma caboclinha baixinha, quase anã. Ficou um casal tão diferente que quando saíam juntos provocavam risos. Até parecia desenho animado.
Quando Isabel ficou grávida, seu marido queria um filho e nasceu uma menina. Ele ficou furioso e disse: “Já sei, os culpados disso devem ser o Tinoco e o Teixeira!”
Um rapaz, que namorava uma moça de nossa fazenda , não era bem visto pelos dois. Certa noite ele deixou seu cavalo – muito bonito – pastando em frente à casa da namorada: o Tonico e o Artur Teixeira rasparam o rabo inteirinho do cavalo. Nunca mais o rapaz apareceu em nossa colônia.
E o caso do vendedor de alho, então. Era um homem de idade que de mês em mês aparecia em nossa colônia para vender seu produto e jogar bocha. Um dia, o velhinho estava tão entusiasmado com o jogo que não percebeu quando os dois soltaram o freio do animal, fazendo com que ele saísse correndo entre os pés de café, esparramando alho por todos os lados. O vendedor precisou dormir na colônia e, no dia seguinte, sair à procura do cavalo.

OS BAILES DA TUIA DE NOSSA COLÔNIA


Tinoco:
- Quando o nosso conjunto tocava nos bailes, ficava mais gente apreciando a cantoria do que dançando. Tonico, além de cantar no conjunto, era seresteiro por vocação. Chegava até a ser um seresteiro “cricri”: em qualquer grupinho ou reunião, onde ninguém estava se lembrando de música, ele vinha com o seu violãozinho de cordas emendadas. Tonico era o reconciliador de romances desfeitos, alguns dos quais acabavam em casamento.
Todas as sextas-feiras organizávamos os bailes para o sábado. Um rapaz era designado para solicitar a tuia para o administrador, outro para o café da meia-noite, e um terceiro cuidava das bebidas. O conjunto era do grupo e não havia problema.
O mais engraçado era quando íamos fazer o convite para as famílias que tinham moças. O dono da casa recebia-nos com muito respeito e depois ouvia o tradicional convite: “Viemos convidar o senhor e suas filhas para o nosso bailinho de amanhã”. Em seguida, o velho ficava mudo, acendia o cigarro, rangia os dentes, fazendo aquele suspense. As moças, ouvindo às escondidas atrás da porta da cozinha, faziam promessas ao santo de devoção para que o velho dissesse sim. Depois dessa expectativa toda, o pai, muito calmo, dizia: “Se eu puder vou dar uma espiada, mas minhas filhas acho que não irão. Onde já se viu, baile todos os sábados? Ficam mal acostumadas”. Ele não voltava atrás, sua palavra era como a de um rei: não adiantava choro, reclamação – nem a mãe das moças dava jeito.
Esses contras eram muito comuns, mas nem por isso deixávamos de realizar nosso baile. Ele seguia animadíssimo, mesmo sem a presença de algumas damas.

O CARNAVAL NA COLÔNIA


Tonico:
- Em nosso tempo, o carnaval interiorano era assim: na semana do carnaval ficávamos nos preparando com o conjunto, organizando tudo. Os ensaios eram feitos no terreiro da casa do Sebastião, o mestre-sala dos bailes.
No sábado, o bailão de fantasia muito simples, com as damas com vestidos vermelhos, bem compridos, e com pinturas exageradas e fita vermelha nos cabelos eriçados. Nenhuma delas podia usar calças compridas: a mulher que não vinha ao baile com vestido longo podia mudar de fazenda, pois ficava desmoralizada. Shorts e biquínis nem é preciso falar.
Domingo organizávamos o cordão que percorria a fazenda, e o conjunto cantava esta modinha: “Segura, meu bem,/ segura na mão./ Não deixe partir o cordão. / Olha pra mim, criatura,/ veja se eu tenho razão./ Eu pego na sua cintura,/ o trouxa que pegue na mão”.
O ponto final era na tuia, onde o baile já estava programado e se dançava até a meia-noite. Na segunda-feira, trabalho na roça o dia inteiro e, na terça, só até o meio-dia. À tarde, saía o cordão e depois seguia o baile animadamente com aquelas marchinhas: “Jardineira”, “Periquitinho Verde”, “Casta Suzana”, “O Galo Cantou”, “Teu Cabelo Não Nega” e “Poleiro de pato é no chão”. O baile parava à meia-noite e entrava a Quarta-Feira de Cinzas. Desencordoávamos os instrumentos, que só voltavam a ser afinados no sábado depois da Aleluia, com muitos bailes e casamentos.

O BAILE DE ALELUIA


Tinoco:
- O mestre-sala era o Sebastião de Sousa, que foi também o nosso segundo professor de violão. Quando a tuia já estava completa – antes de começar o baile – ele dava as suas ordens: “O cavalheiro que estiver armado, é favor deixar sua arma no jacá que está na entrada e se identificar com o porteiro”. E continuava: “As damas não podem dar tábua nos cavalheiros, têm que dançar com todos, a não ser que o indivíduo esteja embriagado. E aqueles que não gostaram das minhas exigências já sabem: a porta da rua é serventia da casa. Os que vieram a cavalo não podem dançar com a espiga de milho no bolso. As damas ficam à direita do salão e os rapazes à esquerda: muita educação com as moças ao tirá-las para dançar”.
De vez em quando corria pelo salão uma boa pinguinha para os homens e anisete para as damas, e à meia-noite era a hora do pão com café; de manhãzinha começava a quadrilha. O mestre-sala anunciava: “Cada um tira seu par e vamos pra quadrilha. Sanfoneiro, uma quadrilha bem machucada. Todos com suas damas, bem balanceado... à esquerda... à direita... roda grande... agora vamos fazer duas rodas... os homens para fora e mulher para dentro... bem balanceado... cada um coroando sua dama... em seu lugar... faz que vai mas não vai... passa trem... caminho do mato... lá vem chuva... olha a cobra no caminho... a mula mancou... agora a dança com as damas... bem balanceado... outra vez... agora só dança homem com homem... bem balanceado... param as damas... bem requebrado... cada dama beija seu homem...” e a quadrilha terminava com grande alegria. Todos se despedindo com aquela saudade do bailão da tuia.

TONICO TENTA ARRANJAR OUTRA NAMORADA


Tonico:
- Eu não tinha sorte no amor. Apaixonei-me novamente, desta vez por Zula, filha do administrador Antônio Vani. Era um romance quase impossível, pois a moça era intocável: seu pai não permitia amizade com família de colonos e ela só saía de casa para buscar água na mina.
Depois de muito sacrifício conseguimos nos encontrar na bica. Fiquei muito emocionado e meu coração quase parou. Então, Zula disse: “Joãozinho, preciso falar com você. Eu queria que você cantasse aqui a modinha “Adeus, bela”, só pra mim”. Não saíram nem os versos, nem a música, e ela perguntou: “Que é isso, Joãozinho, é vergonha?” Com a voz trêmula, respondi: “Não, é amor”. Ela ficou surpreendida? “Mas é verdade mesmo?”
O encontro ficou marcado para o baile de sábado, porque lá poderíamos conversar e dançar sem a interferência do pai dela. Falei pra Zula: “Então, no baile a gente vai poder combinar novos encontros, enquanto dançamos”. Ela pegou na minha mão e se despediu dizendo: “Até sábado, no baile da tuia”, e foi subindo o trilho com a vasilha de água na cabeça. Eu fiquei ali parado, vendo ela subir o morro e pensando: “Será que eu não estou sonhando?”
Já pensava até em ser administrador da fazenda, só para ganhar mais facilmente a simpatia do pai dela.
No dia do baile, a emoção foi maior e combinamos novo encontro, que seria na Festa de Nossa Senhora Aparecida de São Manuel, no dia 15 de agosto. Lá o pai dela também não iria e nós poderíamos ficar mais juntinhos, conversando. Fui para casa em meio a uma forte chuva, mas estava pensando tanto na namoradinha que nem sentia a chuva caindo. Cheguei em casa todo molhado. Peguei o violão e na mesma hora cantei esta música:


“VEM DEPRESSA”, de Tonico e Tinoco.

Não sorri, ô mulher, quando eu choro
Não sorri, ô mulher, mais de mim
Tu bem sabes a dor que padeço
Tu, querendo, bem pode dar fim.

Vem depressa, visão do meu sonho
Vem depressa, meu anjo de amor
Dai alívio os martírio que sofre
Este pobre e infeliz trovador.

A teu lado serei venturoso
Em meu peito esse amor guardarei
E depois de gozar teus carinho,
Em teus braço feliz morrerei.

Vem depressa, ...

Vem a lua, tão meiga e tristonha,
Vem beijando a face do má
Eu me lembro de ti com saudade
E tristonho me ponho a chorá.

Vem depressa, ...

 

TONICO E ZULA NA FESTA DA APARECIDA


Tonico:
- As horas não passavam só de pensar no encontro com Zula, no dia 15. Sonhava sempre com a imagem da morena buscando água na bica. O serviço não rendia mais, eu só fazia planos. Para mim ela era a fada encantada e eu ficava imaginando minha vida melhorar como genro do administrador. Ficava capinando café já com um certo desprezo pela enxada. E pensava: “Serei o fiscal da fazenda. Preciso contar essa aventura para alguém. Ao Tinoco?  Não, se contar para ele a fazenda inteira vai ficar sabendo”.
Ao pai dela que eu não ia contar, porque ele, inclusive, já devia estar imaginando tudo pelos meus gestos. Uma vez ele disse: “Muito cuidado com esses namoricos passageiros. Essas moças têm bicho de goiaba na cabeça e no fim não dá certo”. Eu pensava comigo: “Esse velho não sabe o que fala. Todas podem ter bicho de goiaba na cabeça, menos a Zula”.
Chegou, finalmente, o dia 15 de agosto, um sábado. A família do administrador foi de trole, um dia antes, e se instalou na casa de parentes. Antes de sair, quando ela passou na nossa porta, sorriu e deu um “até-amanhã”. Eu voltei pra dentro de casa mais soberbo, pensando nos meus direitos de acompanhar a família dela como boleeiro (condutor de trole), mas, ao mesmo tempo, sabendo que seria muita farofa pra minha azeitona.
Fui ao rio tomar banho, coloquei um terno cáqui – calça larga e paletó curtinho – e um cravo vermelho na lapela, que eu ia colocar nos cabelos de Zula no nosso encontro na festa. Caminhei dezessete quilômetros a pé e, quando cheguei na igreja, parecia que ia desmaiar, tanta era a dor nos pés. Mesmo assim fui procurá-la. Achei-a juntamente com sua mãe, sua irmã Toinha, seu irmão Lauro e também o Pedro, um empreiteiro da Prefeitura de São Manuel. Não dei muita importância por ele estar com ela, pois sabia que eu era seu preferido.
Eu segui atrás, pigarreando, mas ela nem me notou. Não sentia nem mais a dor nos pés: para mim, a festa tinha acabado. Por causa dela, eu estava até endividado: tinha mandado colocar dente de ouro e, inclusive, comprado abotoaduras a prestação. Morreram minhas esperanças, arranquei as botinas novas e botei o pé na estrada. Chegando em casa, descrente de tudo, peguei a viola e compus a música “Cabocla”, que, chorando, cantei:


Cabocla, como é triste meu viver,
Sem esquecer um só momento teu amor
Me deixaste no sertão abandonado,
Este caboclo magoado, padecendo grande dor.

Sua casinha lá no arto da montanha
Agora é tão estranha, tem mesmo a cor da saudade
Que crueldade da cabocla, minha amada,      }
Esqueceu sua morada e a minha felicidade.  }  Bis

Pedi a santo pra minha felicidade,
Eu quero, por caridade, o amor dessa muié
Quem tanto quer, quem te ama, quem te adora,
Tão triste chora neste rancho de sapé.

Me desprezaste por um outro da cidade,
A maior infelicidade é desprezar quem quer bem
A sorte foge e o dinheiro se escasseia,
Torna a vim morar na ardeia, fica igual a eu também.

A MUDANÇA PARA SOROCABA

Tinoco: - Chegou o final do ano agrícola de 1937. Muitas famílias mudando para outras fazendas e nós, os Perez, indo com outras famílias para Sorocaba, tentar a vida na cidade. Fomos morar na Vila Barcelona.
As minhas irmãs trabalhavam na Fábrica de Tecidos Santa Maria, eu de engraxate na Estação Sorocabana e o Tonico na Pedreira Santa Helena, onde fabricavam o cimento Votorantim.
Muitas coisas aconteceram: ficamos famosos no bairro, cantando em muitas festinhas. Alguns amigos, como o Luiz Ávila, nos encorajavam para que fôssemos cantar na Rádio Clube de Sorocaba. Seguimos o conselho e, quando chegamos, entramos sem tirar o chapéu. Encontramos um senhor e já fomos perguntando: “O senhor é o dono da Rádio?” Ele respondeu que era diretor e perguntou com um ar de brincadeira: “Está chovendo aqui dentro?” Respondemos: “Não senhor, nem aqui dentro nem lá fora”. Quando íamos dar o nome da dupla, ele falou com uma voz que mais parecia um trovão: “Então vocês vão para fora, entrem de novo, mas sem estes chapéus, que mais parecem folhas de abóbora. Depois, venham falar comigo”.
Naquele tempo, o chapéu da rapaziada era de aba larga. Ficamos tão envergonhados com o que ele falou, que saímos derrubando as cadeiras do auditório. Saímos para a rua sem saber que rumo tomar. Voltamos para casa aborrecidos, querendo retornar à roça porque lá todos eram amigos de verdade. A mãe e as irmãs não se acostumavam com a cidade, tampouco se adaptavam ao trabalho da fábrica. O pai sempre tristonho, recordando seus bate-papos com os compadres, suas barganhas de cavalos.

CHIQUINHO ACIDENTADO NA RAPOSO TAVARES


Tonico:
- Chiquinho estava empregado na construção da rodovia Raposo Tavares, de Sorocaba a Votorantim. Naquele tempo não havia máquinas para cortar morros e serras, para se fazer os aterros da estrada. Era tudo feito a picareta, e o transporte da terra através de carrocinhas puxadas por burros. O Chiquinho era fiscal deste transporte.
O trabalho era simples pois os burros conheciam o serviço e o caminho. Chiquinho sentava na última carrocinha e cuidava para que os burrinhos não saíssem da fila. Porém, ele resolveu sentar-se numa carrocinha do meio e “puxar” um sono, já que os burrinhos conheciam o caminho e a viagem durava horas. Amaciou a terra, formou uma cama e adormeceu.
Nisto, a carrocinha passou em cima de uma pedra  grande, jogando-o para fora: a carrocinha que vinha atrás passou com a roda por cima de seus pés. Além de perder o emprego, Chiquinho ficou mais de um ano sem trabalhar, pois não conseguia nem andar.
Fui praticamente eu quem criou o Chiquinho. Desde pequeno ele só andava comigo. Nos jogos de futebol, eu jogava com o Chiquinho nas minhas costas. Uma certa ocasião quis deixá-lo encarregado de trazer água pra nós na roça, mas ele era tão lerdo que só aparecia quando já estávamos morrendo de sede. E o almoça na roça: se o terreno fosse cheio de buracos, Chiquinho ficava todo torto – com as pernas para cima, mal acomodado – mas não procurava outro lugar. Comia com a mão direita e, com a esquerda, espantava os mosquitos. Até para a cidade ele trouxe esse vício: mesmo sem mosquitos, ele comia espantando insetos imaginários.

TINOCO, O ENGRAXATE

Tinoco: - A família não estava se acostumando com a vida na cidade. Tonico trabalhava na pedreira, mas o seu Coelho – um português explosivo – descarregava tudo nele. Ele era sempre o culpado do que acontecia.
Mas eu estava feliz. Engraxava sapatos na Estação Sorocabana e tudo que ganhava gastava com sorvetes. Nunca tinha visto sorvete na vida, assim como também não tinha visto geladeira. Tudo parecia um sonho.      
Alguns fregueses chamavam minha atenção porque eu falava alto. Isto porque repetia o que estava pensando, e às vezes dizia: “Este vai ser amarelo”, pensando no sorvete. E o freguês replicava: “Minhas botinas são pretas, que amarelo!”

DEIXAMOS SOROCABA

Tonico: - Um belo dia, após o jantar, ficou tudo resolvido: voltaríamos de novo para a roça, em São Manuel. Todos pularam de alegria. No dia seguinte, nosso pai embarcou para São Manuel e arrumou serviço na Fazenda Jardinópolis, da família Barros. O administrador da fazenda era o seu Pedro Elói.

A FAMÍLIA NO TREM


Tonico:
- Nosso pai deixou tudo providenciado, até as passagens. Como não tínhamos móveis – em casa, usávamos caixas – só levamos as roupas. Nossa mãe nunca tinha andado de trem. Na estação ela se benzeu e pediu para todos ficarem reunidos, para não se perderem. Nós, com toda a mudança, tivemos dificuldade para subir no trem.
Quando embarcamos, todos queriam a janela, mas os melhores lugares já estavam tomados. Conseguimos duas janelas, mas uma teve que ficar para a mãe, porque ela tinha falta de ar. Começou a esfriar: todos com a janela fechada, e somente nós com as duas abertas. As pessoas falavam: “Mas que falta de respeito, será que não estão sentindo nada?”
O Chiquinho era o que mais sofria com a viagem e toda hora pedia para ir ao banheiro: então, o Tinoco autorizou. Ele ficou lá dentro mais de uma hora e do lado de fora formou-se uma fila querendo entrar: o Chiquinho tinha adormecido no banheiro.
Hora de comer: todo mundo avançou para a panela. Era farofa que voava para todos os lados. O fiscal até evitava passar perto de onde estávamos e nós não entendíamos o porquê.
Finalmente chegamos em São Manuel. Nosso pai esperando na estação, com um carroção de quatro rodas emprestado da fazenda, para seguirmos viagem.

FAZENDA JARDINÓPOLIS E BREJÃO


Tonico:
- Começamos tudo de novo: sem dinheiro, sem criação, com poucas roupas e muito trabalho pela frente. Tinoco, que era o mais forte, foi trabalhar no machado, fazendo benfeitorias na fazenda. Ficamos neste local pouco tempo, pois logo em seguida surgiu uma outra oportunidade.
Conseguimos trabalhar na Fazenda do Brejão, onde a terra era melhor. Derrubamos muitos alqueires de mata virgem para o plantio de café e cereais. Ali havia muita fartura e a possibilidade de ganhar um dinheiro com a vida um pouco mais mansa.
Logo formamos um conjunto – Os Caboclos do Brejão – com Sílvio Vacaro e eu, no violão, Tinoco, na viola, Tião, no pandeiro, Chiquinho, no cavaquinho, e João Nicolete, na sanfona. Éramos solicitados para tocar em festas e bailes de toda a redondeza.
Na época havia muitos conjuntos. O Grupo de Cantadores do Claudino, na Fazenda do Salto, o conjunto Azor, na Fazenda Pasto Velho, e o conjunto Nenê Pipa, na Fazenda Monte Alto. Numa festa de fim de ano da Fazenda São João de Sintra, surgiu a primeira chance de mostrar nossa cantoria a pessoas de muitas cidades onde éramos atração. A responsabilidade seria grande.
O seu José Augusto de Barros – administrador da fazenda -, quando nos ouviu cantar a moda de viola “Padecimento” (“Minha viola de pinho,/ seu bojo é feito de um esse,/ seu coração de madeira, ai, ai, ai,/  também suspira e padece, ai...”) ficou tão entusiasmado que disse: “Vou levar vocês para cantar na Rádio Clube de São Manuel”.

A PRIMEIRA APRESENTAÇÃO EM RÁDIO


Tinoco:
-  O seu José Augusto de Barros, num certo dia, apareceu num caminhão Ford 29, e lá fomos para São Manuel participar do programa “O Domingo é Nosso”. Em toda a região havia apenas dois rádios: um na sede da fazenda e outro na Estação Inácio Pupo (Sorocabana). Nossa família contou para todo mundo sobre nossa cantoria. A sede da fazenda ficou repleta de gente para ouvir o rádio.
Chegamos em São Manuel empoeirados, parecendo bonecos de chocolate, pois tínhamos vindo na carroceria do caminhão. Descemos com nossas violinhas encardidas e nos dirigimos para o estúdio, onde o diretor falou:  “Quando aquela luz se acender, vocês começam a cantar, e vejam se não erram”. Cantamos uma música do Cornélio Pires, “Jorginho do Sertão”.


O Jorginho do Sertão é um rapaz inteligente
Numa carpa de café ele enjeitou três casamento
Acabou o seu serviço alegre, muito contente
Foi dizer ao seu patrão: - Quero a minha conta corrente.

Sua conta não te dou por ser um rapaz de talento
Jorginho, tenho três filhas, lhe ofereço em casamento
Logo veio a mais velha, por ser mais interesseira:
Jorginho case comigo que sou mais trabalhadeira.

Logo veio a do meio  com seu vestido de chita:
Jorginho case comigo que eu das três sou mais bonita
Logo veio a mais nova, vestidinha de amarelo:
Jorginho case comigo que eu das três sou a flor da terra.

Na hora da despedida, ai, ai, que as morena chora, ai, ai
O Jorginho do Sertão é um rapaz de pouca lua:
Não posso casar com as três, então não caso com nenhuma
Na hora da despedida que as morena chora
Adeus pra vocês que ficam, o Jorginho vai s’embora.

Fomos muito aplaudidos pelo auditório, mas o programa, naquela hora, não estava sendo transmitido para fora. Ficamos decepcionados e o acontecimento serviu de piada. O seu José Augusto, que era acionista da Rádio, desligou-se dela imediatamente, não aceitando os argumentos do técnico de que a rádio havia saído do ar.

NOSSOS DIVERTIMENTOS


Tinoco:
- Quando terminou o contrato agrícola da Fazenda do Brejão, mudamos para a Fazenda do Salto para tratar de cinco alqueires de algodão. Foi uma mudança cheia de esperanças: acostumados com o café, pensamos que poderíamos ganhar mais com o algodão. Mas a geada quebrou nossas esperanças, foi um ano difícil. Contudo, apesar disso, nos divertimos muito.
O trem passava bem no meio da colônia e, aos sábados e domingos, fazíamos a nossa paquera na estação. Além disso, ouvíamos rádio – noticiários de futebol e política, este último muito controlado, pois estávamos no regime da ditadura do Estado Novo. De segunda, quarta e sexta-feira sintonizávamos o programa “Três Batutas do Sertão”, da Rádio Record, com Torres, Serrinha e Rielli, e o programa “Nhô Totico”, da Rádio Cultura. Às 22 horas encerravam-se todas as transmissões radiofônicas. Por ouvir muito rádio, o pessoal da Fazenda do Salto tinha um grau de sabedoria maior do que os que moravam em outras fazendas. Estavam a par de tudo.
Em futebol, o time da Fazenda do Salto era o campeão das redondezas, contando com o Claudino de Sousa, o Pelé da região, seu mano João e mais Júlio Vieira, Chico Canhoteiro, Didi Canhoteiro, João Severino, João Bonane e Toninho Bonane – este último, além de nosso melhor goleiro, era bom sanfoneiro. Com a participação dele pudemos formar o melhor conjunto vocal do lugar.

COMEÇO DE ANO NAS FAZENDAS


Tinoco:
- Começo de ano, muitas novidades, muitos casais novos, cheios de esperança. Como os colonos tinham recebido o pagamento geral, estando, portanto, com dinheiro no bolso, os mascates vinham para oferecer suas mercadorias.
A maior surpresa foi a aparecimento de uns turcos – num automóvel marca “Ruguby” – trazendo ternos de casimira azul-marinho, bem-feitos e baratos. Todos compraram, pois este tipo de tecido só os filhos dos fazendeiros possuíam: era até um abuso colono com terno de casimira.

O QUE É BOM DURA POUCO


Tonico:
- A Fazenda do Salto estava renovada: todos muito bem vestidos. Nos bailes, as mocinhas procuravam dançar com os rapazes de terno.
Contudo, a alegria durou pouco. Com a primeira chuva, as casimiras desbotaram, encolheram, rasgaram no meio das pernas. Resultado: os que compraram as roupas novas ficaram os mais mal-vestidos.
A rapaziada não se conformava, queria encontrar os turcos para acertar as contas. Até que um dia eles voltaram na colônia. Quando os turcos viram as roupas encolhidas, foram logo dizendo: “Como vocês cresceram!”
O Tinoco foi o primeiro a reclamar: “Mas como é que essa porcaria ficou assim tão desbotada e encolhida?” Os turcos responderam: “Isso é olho gordo, vocês têm que ir na macumba”. E foram embora, deixando a gente falando sozinho.

TONICO APANHA DO SOLDADO


Tonico:
- Aos domingos, pegávamos o trem de passageiros das 14 horas, seguindo até São Manuel para procurar novas marcas de cigarros. Isto porque somente aos domingos fumávamos cigarros de papel: durante a semana era fumo de corda enrolado em palha. Os cigarros mais caros – o Fulgor e o Adelfi – custavam quinhentos réis e os quebra-peitos Yolanda, Olga, Supimpa e Castelões, a metade do preço. A novidade era o cigarro Leônidas, que trazia prêmios.
Ficávamos na cidade até as 20 horas, apreciando a banda de música no coreto do jardim. As moças passeavam pela direita e os rapazes pela esquerda, enquanto a banda tocava o Hino Nacional. Nesse momento, alguns rapazes paravam, outros tiravam o chapéu.
Certa vez eu, que estava de olho numa moreninha, nem me lembrei de fazer continência: não tirei o chapéu nem fiquei em posição de sentido. Um soldado, que estava do outro lado da rua, veio em minha direção e eu pensei: “Deve ser algum amigo que gostou de nossa cantoria”, pois já tínhamos nos apresentado na PRI-6 de São Manuel e agradado muito.
Porém, o soldado chegou perto de mim e me deu um pé-de-ouvido que fez meu chapéu voar para o meio da rua. Ele disse: “Ô caipira, não respeita nem o Hino da terra? Todos os brasileiros têm que tirar o chapéu, ouviu?” Eu respondi: “Sim, senhor”, e fui saindo devagar para esperar o noturno das 23 horas. Com a festa acabada e a orelha quente.

MUDAMOS PARA SÃO PAULO


Tinoco:
- Estávamos no final de 1940. Venceu o contrato do algodão, entregamos a empreitada ao patrão, e todos os membros da família decidiram vir para São Paulo. Nosso pai dizia: “Já que vamos nos afogar, vamos procurar um rio bem grande. Vamos tentar a vida na Capital”.
Ele veio na frente, para sondar os costumes e procurar uma casa. Ficou hospedado na casa da tia Inhana - na Rua da Mooca, 1270 – que já morava ali há dois anos em companhia dos filhos, todos bem empregados. Nós ficamos na fazenda vendendo tudo o que podíamos e, juntando esse dinheiro ao que tínhamos ganho com o pagamento da colheita de algodão, apuramos três contos de réis.
Chegamos a São Paulo no dia 9 de janeiro de 1941, com quatro sacos cheios até a boca – contendo os trens de cozinha que a mãe não quis vender – mais duas trouxas de roupas; cada um de nós estava responsável por um volume. Quando desembarcamos na Estação Sorocabana foi um sufoco: nunca tínhamos visto um movimento tão grande; ficamos zonzos.
Pegamos nossas bagagens e encostamos na parede para esperar nosso primo. Haviam nos recomendado para que tivéssemos muito cuidado, pois aqui em São Paulo – falaram – roubavam até mulher que não conhecia a cidade.
Nosso primo demorou duas horas. Já estávamos desesperados. Quando o avistamos, parecia que estávamos vendo Jesus Cristo. Ah, o nosso primo Miguel da sanfona. Que saudade! Ele chegou perto, abraçou a todos, e depois perguntou das malas. Ao mostrarmos a montanha de sacos, ele se assustou.
Paramos o bonde Bresser nº 11 e o motorneiro não queria deixar que nós embarcássemos: “Isto é uma condução e não um caminhão de mudanças”, ele disse. De tanto insistirmos, ele autorizou.
Depois disso tudo já estávamos com vontade de voltar para a roça. Íamos pensando: “Será que a casa da tia é igual às da fazenda, com dez ou doze quartos?” Quando chegamos, a realidade era bem triste: nosso pai não havia conseguido alugar moradia nenhuma e a casa da tia Inhana tinha somente um cômodo, onde já moravam oito pessoas. Assim, ficamos em dezesseis pessoas durante oito dias, até que conseguimos encontrar uma casa.

CONSEGUIMOS CASA


Tonico:
- Subalugamos uma casa na rua Placidina, na Mooca, também com somente um cômodo e com a cozinha do lado de fora. Nós não nos acostumávamos com a moradia. Minha mãe, principalmente. Como na fazenda ela utilizava o fogão de lenha, não conseguia se habituar com o de carvão.
Compramos dois colchões, fizemos um biombo e repartimos o quarto. De um lado dormiam a mãe, o pai e as meninas; do outro, nós três, num colchão atravessado no chão.
Num belo dia, apareceu um mocinho em nossa casa – sem emprego, sem família e sem dinheiro – e tanto que implorou pro pai que acabou sendo nosso pensionista, a pagar quando arrumasse emprego. A mãe falou: “Onde come oito, come nove”.
E acabamos dormindo em quatro no mesmo colchão: eu, Tinoco, Chiquinho e o pensionista. Depois de um mês ele arrumou emprego na Light.

CONSEGUIMOS EMPREGO


Tonico:
- A época estava difícil, tempos da Segunda Guerra Mundial. Para tirar os documentos foi outra luta, pois exigiam carteira de trabalho, de saúde, de reservista e carta de referência. Profissão: trabalhador braçal.
As irmãs estavam empregadas em casas de família, o Tinoco, num depósito de ferro-velho, o Chiquinho, na Metalúrgica São Nicolau, e eu, sem conseguir nada. Para ir me virando, comprei uma enxada e trabalhava como diarista capinando a chácara de um alemão, em Santo Amaro. Até que surgiu uma oportunidade para trabalhar na Tinturaria Picina, situada na rua Visconde de Parnaíba, ganhando 280 mil-réis. Eu nem fui buscar a enxada na chácara do alemão.
Depois de algum tempo me registraram. Em seguida, arrumei emprego também pro Tinoco, e a nossa vida foi melhorando um pouco.
Conhecemos duas famílias de operários da tinturaria – os Cabrera e os Boem – e fomos convidados por eles para cantar num parque de diversões na rua Odorico Mendes. Pagaram uns cruzeiros para que o dono do parque permitisse que cantássemos pelo serviço de alto-falantes. Como ao final da apresentação fomos muito aplaudidos, o dono nos convidou para cantar mais, sem precisar pagar nada. Para nós foi uma grande vitória, e os amigos comentavam: “Vocês deviam cantar na rádio!”
Nosso pai não encontrou emprego, mas trabalhava na limpeza de uma padaria, ganhando em troca um saco de pão amanhecido. E como isso nos ajudava! De manhã era café com pão, no almoço pão com café e, na janta, pão com pão. Essa foi a fase mais difícil.
Contudo, aos sábados íamos cantar em casa de amigos: do seu Eugênio Luciano e do Manezinho. Todos eles diziam: “Se vocês forem cantar em qualquer programa de calouros, vão conseguir o primeiro lugar”.
Então nos inscrevemos num programa de calouros da Rádio Cultura – o “Peneira Rhodine” – e ganhamos o primeiro lugar. Em seguida, participamos do programa de calouros da Rádio Record – comandado pelo saudoso Otávio Gabus Mendes – e conquistamos o segundo lugar.

O SAPATEIRO


Tinoco:
- Os primos sempre nos orientando: “Muito cuidado aqui em São Paulo; não comprem nada sem pechinchar”. O Tonico havia mandado pôr meia-sola em um sapato, ali mesmo na rua Placidina – hoje viaduto Alcântara Machado – numa sapataria de propriedade de um italiano. Quando o Tonico foi buscar o sapato, ele deu o preço: “Tudo ficou em dois fiorini”.
Lembrando das orientações do primo, Tonico disse ao sapateiro: “Dois mil-réis? Está muito caro! Quantas tachinhas você pregou?” O italiano ficou vermelho, igual a um peru, pegou os sapatos da mão do Tonico e, com um alicate, despregou tudo, tirou a sola e os jogou nos seus braços, dizendo: “Some  daqui, seu caipira buzegato”. Tonico não contou pra ninguém, mas eu estava na porta, observando tudo e aprendendo: pechincha, só com turco.

MUDANÇA DE CASA


Tonico:
- Mudamos para a rua dos Alpes, 151, no Cambuci, numa casa com dois cômodos e cozinha. Só que tivemos algumas surpresas, não muito boas: a cozinha era pra duas famílias e, além disso, para as pessoas irem ao único banheiro existente, tinham que passar no meio de um dos nossos cômodos. Não existia outra passagem. O pai e a mãe dormiam num quarto com as nossas irmãs, e eu, o Chiquinho e o Tinoco dormíamos no cômodo que serviria de sala.
Numa época apareceu o Luisinho Ávila, de uma família de Sorocaba a quem devíamos muita obrigação, e ficou como nosso pensionista, dormindo também na sala. Hoje, o Luisinho é tenente da Aeronáutica.
No local moravam mais doze famílias que utilizavam o único banheiro: o sanitário nunca estava desocupado; de manhã formava-se uma fila, todos de penico na mão, para não perder o lugar.
Era tudo muito precário e até o lugar das mulheres lavarem roupa era pequeno. Enfim, para aquele lugar ser um cortiço não faltava muito.
Morava lá uma espanhola tão fofoqueira que o fogão dela tinha quatro rodas: ela começava a fazer o almoço na porta de seu cômodo e, conforme as novidades, terminava em outra porta. Por isso, quase ela era o pivô das brigas.
Depois de muito tempo, quando já estávamos até acostumados com o cortiço, mudamos para a rua Cananéia, em Vila Prudente, graças à indicação dos amigos Pauluchi. Nessa nova residência – de três cômodos, com sala, cozinha e banheiro dentro de casa – moramos muitos anos, até conseguirmos comprar uma casa própria, na rua Itapegi, e sossegarmos com as mudanças.

O PRIMEIRO CIRCO


Tonico:
- Fizemos muitas serenatas com o Luciano, cantando em aniversários de famílias. Depois participamos e do programa “Manhãs na Roça”, de Chico Carretel – recebendo muitos elogios – onde conhecemos Nhô Nardo e Cunha, na época líderes da música sertaneja.
Num dia, fomos conhecer um circo na rua Lins de Vasconcelos e qual não foi nossa surpresa: vimos pessoalmente Raul Torres, Florêncio e Rielli, e ficamos tão pasmados que acompanhávamos o gesto deles baterem a viola. Também, nessa época, conhecemos o saudoso Teddy Vieira e seu parceiro Naby Casseb e, por intermédio deles, Palmeira e Piraci, e Zé Carreiro e Carreirinho – estes últimos, artistas exclusivos do programa “Bicho-de-pé”, da Rádio Record.

A NOSSA CHANCE


Tinoco:
- Eugênio Luciano sempre comentava nossas cantorias com seu cunhado Demétrio Checon - conhecido por Bepe da Sanfona - artista contratado da Rádio Difusora: então, ele nos encaminhou para uma inscrição no programa “Arraial da Curva Torta”. Seu apresentador, o saudoso Capitão Furtado, estava procurando uma dupla à altura para substituir Palmeira e Piraci, que haviam sido contratados pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
O concurso era coordenado por Mauro Pires, irmão do Capitão Furtado, que fez nossa inscrição e explicou o esquema do programa, que consistia na apresentação de quatro duplas em cada domingo; a que fosse mais aplaudida iria para a final, concorrendo para o grande prêmio: a contratação pela Rádio Difusora.
Mário Pires olhou para nós e disse: “Vocês vão cantar no dia 20 de julho” (1942). Perguntou em seguida: “Qual é o nome do trio?”. “Bem, meu nome é José “ – respondi – “meu irmão chama-se João e nosso primo, que toca a sanfona de oito baixos, é o Miguel”. “Então, por pura formalidade” – disse Mauro – “vocês serão apresentados como o Trio da Roça, tá?”
No dia marcado para a apresentação cantamos um cateretê: “Tudo tem no Sertão”. Miguel, o nosso primo, só participou do primeiro programa: depois, ele não se adaptou ao rádio e ficou somente a dupla.


Ai, pra cantar essa modinha, fazendo comparação, ai, ai,
Que o cantar dos passarinhos é a alegria do sertão, ai, ai.

Aqui no bairro aonde moro é um lugar de muita alegria,
Eu escuto o cantar dos pássaros quando está clareando o dia
A perdiz pia no campo, a codorninha assobia
As alvoradas do galo era o que mais me entristecia
Faz lembrar dos amores que abandonado vivia.

O trinar das arapongas, quando chega de tardezinha,
a piada dos inambus, no inverno de manhãzinha,
Como é lindo os canarinhos, em revoada canta a andorinha
A juriti canta triste quando ela está sozinha,
O caboclo apaixonado chora na sua violinha.

Também canta a cigarra, ai, nas tardes de calor,
Que canta tão tristemente, enche um coração de dor
Quem vive no seu ranchinho, tão longe do seu amor,
Com tudo ele se apaixona e contempla com rigor,
Cantando a sua modinha pra aliviar a sua dor.

OS MAIS APLAUDIDOS


Tonico:
- Fomos os mais aplaudidos e ficamos para a final, marcada para 15 de novembro de 1942. Nesse dia, estariam todas as dezesseis duplas classificadas, dentre as quais muitas já conhecidas como Nhô Nardo e Cunha Júnior, Serra Morena e Cafezal, Nhô Tide e Marmeleiro e, fazendo humorismo, a dupla Pafúncio e Pafúrdio, chamados de O Gordo e o Magro do Sertão.
O esquema era o mesmo: a dupla mais aplaudida seria a vencedora. Os ingressos foram distribuídos em número igual para cada dupla, para que não houvesse marmelada. A nossa torcida foi organizada pelo Luciano.
Finalmente o dia esperado chegou. No palco, junto com as outras duplas, ficávamos ouvindo piadas a nosso respeito, pois nossas violas eram malfeitas e rústicas. Um dos mais salientes falou: “Êta violinha miserenta. Será que isso toca?” Outros diziam: “Mas vocês imitam bem o tipo caipira, mas que roupa engraçada!" E” e o Tinoco falávamos baixinho: “Deixa pra lá, quem ri por último, ri melhor”.

ARRAIAL DA CURVA TORTA


Tonico:
- Naquele momento em que tocou o prefixo do programa, anunciando o seu início, fez-se um silêncio entre os violeiros: no coração de cada um deles, uma prece de esperança; cada qual seguro de seu talento, querendo mostrar sua capacidade de vencedor.
O doutor Dárcio Ferreira anunciando: “A Rádio Difusora de São Paulo, neste momento, passa a apresentar o maior programa sertanejo do Brasil: ARRAIAL DA CURVA TORTA. Abre-se a cortina e, com vocês, Capitão Furtado, o caipira que fala com o coração, apresentando o maior concurso de violeiros de todos os tempos”.  Aplausos no auditório. O Capitão cumprimenta a todos e apresenta a primeira dupla: Nhô Tide e Marmeleiro. Ao final da apresentação os aplausos: quarenta segundos. Em seguida, a segunda dupla – O Gordo e o Magro do Sertão – obtém cinqüenta segundos de aplausos. Serra Morena e Cafezal, a terceira dupla, conseguem noventa segundos de aplausos do público.
Fomos a oitava dupla. O doutor Dárcio nos apresentou com muito entusiasmo: parceria que estava profetizando algum acontecimento. “E com vocês” – disse ele -, “amáveis ouvintes de todo o Brasil, a dupla da roça: aplausos para os Irmãos Perez”. Repicamos a violinha caipira e cantamos a moda de viola "Adeus, Campina da Serra”, de Raul Torres e Cornélio Pires:

Adeus, Campina da Serra, lugar que fui moradô
O meu leal coração, muitas delícias gozô
No prazo de pouco tempo o meu gosto se acabou,
Despediu e foi embora quem nesta terra morou.

A minha rosa dobrada, desta terra retirou,
Deu o vento na roseira, minha rosa desfolhou
Quando a rosa despediu, a roseira desmaiou,
De paixão e sentimento, os passarinho chorou.

Adeus, carinha de rosa, rainha de toda flor
Adeus, corpo delicado, adeus, coração traidor
Numa triste madrugada, quando ela embarcou,
Na onda do mar que trouxe, a maré veio e levou.

Adeus, coração de bronze, por outro me desprezou
Hoje eu vivo desprezado de quem tanto me estimou
Numa triste madrugada, quando ela se mudou,
Tantas penas e saudade no meu peito ela deixou.

Quando terminamos de cantar, o auditório todo se levantou: aplaudiram com lágrimas, pedindo bis, pois cantávamos de modo diferente; com afinação, fino e bem alto. O cronômetro marcou 190 segundos. Todos os violeiros vieram nos abraçar, e nós, com um nó na garganta, não conseguíamos falar. Vencer todas as duplas! Para nós foi um milagre, uma bênção de Deus.
Foram duas festas: nesse dia, a Rádio Tupi comprara a Rádio Difusora e, assim, fomos contratados pelas Emissoras Associadas para o programa “Arraial da Curva Torta”, da Difusora, e para o programa “Saudade”.
Um contrato experimental de três meses e o pagamento de 170 mil-réis mensais para a dupla. Costa Lima, o Bonachão, considerado o pai dos artistas, era o diretor artístico das Associadas.

OUTRA SURPRESA


Tinoco:
- Ao término dos três meses, recebemos um memorando para comparecermos ao escritório das Associadas. Ficamos desconfiados: “Será o bilhete-azul de dispensa?” Quando chegamos, a surpresa: um novo contrato, com o cachê de um conto e duzentos mil-réis por mês. Isso era uma fábula, pois o salário mínimo da época era 280 mil-réis.
Encontramos o Costa Lima no corredor e ele nos perguntou: “Gostaram do contrato? Só que agora é de dois anos”. Agradecemos ao amigão e a Deus: ficamos exclusivos da rádio.
Marcávamos o ponto todos os dias e olhávamos no quadro de programações; quando víamos o nosso nome escalado em programa, ficávamos satisfeitos. Tínhamos dois programas fixos aos domingos: o “Arraial da Curva Torta”, às 17 horas, e o “Saudade”, às 20 horas. Este era um programa de grande audiência, que tinha a participação do conjunto Serenata, com Peti ao violão, Orlando Silveira na sanfona, Gueli na clarineta, Correia no rabecão e Feguinho Camargo (pai de Hebe Camargo) no violino. O locutor era o doutor Dárcio Ferreira e os organizadores Mauro Pires e Décio Pacheco Silveira. Cantávamos “Tristeza do Jéca”, “Madrugada que passou”, “Luar do Sertão” e “Pé de Anjo”, dentre outras músicas.

A NOVELA QUE NÃO DEU CERTO


Tonico:
- O programa mais popular da época era a “Novela Palmolive no Sertão”, que estava no ar há dois anos, no horário das 21 horas. Serrinha e Caboclinho faziam parte da novela, mas um dia saíram das Associadas e fomos programados para substituí-los no momento em que precisassem de violeiros.
Um dia fomos escalados para cantar uma moda de viola, mas ninguém explicou que entraríamos com outros nomes: Zé do Carro e Zé do Corvo. Os dois personagens deveriam dizer: “Oi, compadre Zé do Carro. Vamos riscar a viola e cantar uma moda bem bonita pra ver se a Rosinha Flor do Campo gosta um pouco mais de mim. Vamos lá”. O contra-regra deu o sinal, “Jaaá”, e nós, ao invés de fazermos como os personagens, nos apresentamos da maneira que fazíamos no programa “Arraial da Curva Torta”: “Oi, minha gente. Aqui está o boa-noite dos irmãos Perez, do João e do José”. Riscamos a viola e, quando olhamos para o estúdio, o diretor do programa – o Fernando Balerone – estava quase desmaiando, arrancando os cabelos. Continuamos a cantar despreocupadamente, pensando que era cena do diretor durante a moda.
Saímos a toque de caixa do estúdio, fomos intimados a comparecer no estúdio e quase expulsos da Rádio. Nunca mais fomos solicitados para essa novela.

O GOVERNADOR, UM JORNALZINHO DE CRÍTICA


Tonico:
- Todas as quintas-feiras circulava um jornalzinho – O Governador – que constantemente tecia críticas a erros ocorridos nas rádios. Eles fizeram os maiores “venenos” em relação à nossa gafe na “Novela Palmolive no Sertão”. Outra fofoca que saiu publicada era sobre o aniversário de um dos componentes do conjunto Águias da Meia-Noite. Na festa, após todos cantarem parabéns, vieram umas fãs e entregaram dois buquês de flores. No final, o aniversariante estava bravo: “Comprei cinco ramalhetes de flores e me entregaram somente dois!”

BATISMO DE TONICO E TINOCO


Tonico:
- Capitão Furtado, num ensaio do programa “Arraial da Curva Torta”, estava nos ouvindo cantar. Num dado momento, ele chegou e disse: “Não está certo, uma dupla original, com vozes gêmeas e com nome espanhol: Irmãos Perez. O nome tem que ser gêmeo também: que tal se a partir de hoje vocês passarem a se chamar TONICO E TINOCO?” Aceitamos e, no programa, Capitão Furtado anunciou: “No próximo domingo, o programa será premiado com uma nova dupla. Aguardem. Estreando aqui no ‘Arraial da Curva Torta’”.
Quando chegou o outro domingo, o Capitão Furtado fez o anúncio: “Aplausos para a nova dupla, TONICO E TINOCO, que ficou no lugar dos Irmãos Perez”. Nossa apresentação foi muito aplaudida.
Estava concretizada aquela profecia do tio Paulo: “Vocês vão ser, de fato, grandes violeiros, com essas vozes afinadas, que mais parecem o trinar de dois passarinhos. Da mesma forma, Deus ouviu as palavras de nossa mãe, quando estreamos a primeira violinha, feita a canivete.
Depois de sermos batizados com o novo nome, o sucesso continuou. No programa seguinte, o doutor Dárcio Ferreira anunciou: “Com vocês, a dupla Coração do Brasil”. Em “Festa na Roça”, outro programa de que participávamos, Lulu Benencase nos batizou de Os Expoentes Máximos da Música Sertaneja.
Com grande responsabilidade, conservamos estes títulos por mais de quarenta anos, alegrando o povão sertanejo com nossa originalidade, penetrando nos corações de todos os que se consideram brasileiros, em todas as classes.

O PRIMEIRO SHOW DE TONICO E TINOCO


Tonico:
- O primeiro show que fizemos como Tonico e Tinoco foi no Cine Catumbi, durante um festival de amadores. Ao término da apresentação, peguei meu violão e desci a avenida Celso Garcia. Quando cheguei no largo da Concórdia, tinha uma escola de samba.
Pensando que eu era do bloco, um crioulo pegou o meu violão e entrou na batucada, só me entregando o instrumento quando amanheceu, na Barra Funda. Eu nem sabia mais voltar para a Mooca, onde morávamos.
Quando consegui chegar em casa, levei uma bronca do pai:  “Que é isso, rapaz? Chegou ontem e já está andando com más companhias?  Abra os olhos porque senão da próxima vez eu faço um colarinho desse violão na sua cabeça!”

TONICO OFFICE-BOY


Tonico:
- Nós já estávamos cantando na Rádio, mas eu ainda trabalhava num escritório da rua Boa Vista, de uma companhia agrícola de Angatuba. O patrão morava na avenida Nove de Julho e todas as quartas-feiras, ao tocar o telefone, eu gelava: era dona Ema, a patroa. “João, pegue papel e lápis” – ela falava – “e vai anotando: vá ao mercado e traga...”. Com uma lista enorme, eu seguia para o mercado e, na volta, com uma cesta enorme, carregada de frutas, legumes etc., eu ia até o largo São Francisco e pegava o bonde Camarão, descendo perto da avenida Brasil. Depois, eu subia até a Nove de Julho e descarregava a carga.
Não tinha sorte: era só sair com a cesta e eu encontrava as fãs. E eu nunca tinha respostas sobre o porquê de estar carregando aquela cesta enorme...
Tinoco trabalhava num depósito da rua 25 de março; de vez em quando nos encontrávamos por ali:  ele com um carrinho lotado de meias e eu com o cestão de taquara. Chiquinho era pajem de um filho de alemães.
Depois de um ano tiramos férias. Por essa época, também, conhecemos o Sertãozinho, um eterno lutador, e com ele fizemos um plano para excursionar com nosso show durante vinte dias. Assim, saímos realizando apresentações em várias localidades, começando por Santa Adélia e Taquaritinga, seguindo por toda a linha araraquarense, passando por Brodósqui, Franca e terminando em Ribeirão Preto. Trabalhamos em cinemas, clubes e até num armazém de secos e molhados: tiramos a sacaria do meio e “largamos brasa”.
Ao término de excursão – no Circo do Biriba, em Ribeirão Preto – fizemos partilha do lucro: quatro contos e quinhentos para cada um. Em comparação com o que ganhávamos na Rádio e no emprego, esse dinheiro era uma fortuna.
Ficamos tão entusiasmados com esse resultado que ao retornarmos para São Paulo – no primeiro dia de trabalho – já marcamos o aviso prévio para mandar o carrinho de meia e o cestão de taquara ‘pra casa do chapéu’.

COM TODO ESSE “TUTU”, TINOCO E SERTÃOZINHO COMPRAM UM CAMINHÃO


Tonico:
- Era preciso fazer um investimento com o dinheiro. Dessa forma, Tinoco e Sertãozinho resolveram comprar um caminhão velho para “puxar” mudanças de circo. Foram numa agência da avenida Paes de Barros, na Mooca, e compraram um calhambeque por três contos de réis.
Já na primeira mudança ficou tudo fiado: o pagamento seria feito quando o circo estreasse na praça. Contudo, o espetáculo foi transferido e o pagamento também. A segunda foi um desastre: numa descida da Penha, quebrou-se o cardan e as rodas caíram. Para consertar, gastaram todo o dinheiro ganho no transporte.
O calhambeque estava tão escangalhado que, num farol da rua Bresser, quando o Tinoco colocou o braço para fora fazendo sinal que ia entrar à esquerda, um transeunte que passava por ali colocou uma moeda em suas mãos: pensou que o Tinoco estivesse pedindo esmolas.
Com tudo isso, Tinoco e Sertãozinho quase foram à falência.

TONICO FOI PARA GOIÁS


Tonico:
- Com minha parte do dinheiro, viajei para Goiás para conhecer uma fã que escrevia sempre para o nosso programa da Rádio Difusora. Depois de um tempo, passamos a nos corresponder, namorando por carta. Ela morava na Fazenda Borboleta, no município  de Orizona, e das fotos que ela me mandava, eu e o Teddy Vieira fizemos a moda “Goiana”:

Ajudai, meu companheiro, ai, ai, que meu peito não alcança
É duma paixão que eu tive, ai, ai, que minha voz logo cansa.

Moça delicada é a flor da bonança,
Mora no outro Estado, de muita distância
Que linda goiana, ficou na lembrança
Suspiro, saudade, coração balança.

Ela é fazendeira de muita finança,
Seu jeito moreno é de confiança
Tenho seu retrato, guardo por lembrança,
Zóio verde-claro, é a cor da esperança.

Corpinho elegante, cabelo de trança,
Parece uma praia  que faz onda mansa
É que nem a rosa que o vento balança
Num galho tão alto que ninguém alcança.

Teu sorriso fere, pior que uma lança,
Num peito judiado que já nem descansa
Quem ama de longe não mede a distância,
O destino encurta e a saudade avança.

Se eu for desprezado, não juro vingança,
Por eu ser violeiro, por gostar de dança
Eu tenho um ditado sempre na lembrança:
Quem despreza compra, quem espera alcança.

Do outro lado do disco que incluiu esta música, foi gravada, com muito sucesso, a faixa “Desprezado”, de nossa autoria:

Vou contar a minha vida, do que eu já tenho passado
Sempre foi rapaz de gosto, um cabocro arrespeitado
Já fui violeiro de fama, das morena cubiçado
Tudo isso se acabô, hoje eu vivo desprezado.

No Triângulo Mineiro, no lugar que eu fui criado,
Eu amei uma morena que caiu nos meu agrado
Ela gostava de outro, sempre me trouche enganado
No meu rancho da floresta, hoje eu vivo desprezado.

Este meu sertão de Minas, pra mim está tudo mudado
Sempre chorando a saudade daquele tempo passado,
Nunca mais dancei catira, vivo triste, acabrunhado,
Daquela ingrata mineira, hoje eu vivo desprezado.

Meus suspiro são doído, no meu peito machucado,
Mais eu tenho uma vingança, no meu coração guardado:
Se a mineira se arrependê, eu não quero mais agrado;
Já acostumei com o desprezo, quero viver desprezado.

Este disco estava no fundo da mala: seria o meu presente para a goiana. A viagem foi longa; de Ribeirão Preto peguei carona num aviãozinho até Araguari. Em seguida, peguei o trem até Pires do Rio, alugando um carro que me levou a Orizona; da cidade, cheguei na Fazenda Borboleta, onde ela morava.
Não conhecia ninguém e, quando me apresentei, ela ficou surpresa; como prova, entreguei o disco da “Goiana”. Fui muito bem recebido pela família: ali todos ouviam o programa “Festa na Roça”.
Fiquei uns dias na fazenda e, nesse período, em nenhum momento falamos em casamento. Depois, ela esteve em nossa casa em companhia de seu irmão, Aluísio, e também não tocamos no assunto. Durante muitos anos ficamos trocando correspondência, mas nossa união não estava marcada no destino: continuamos bons amigos. Assim, esta foi a minha primeira aventura com dinheiro ganho nos shows.

EMPREGO DO CHIQUINHO


Tinoco:
- Enquanto morávamos no Cambuci, Chiquinho trabalhava na Fábrica de Cadeados São Nicolau. Depois, ao mudarmos para a Vila Prudente, ele ficou desempregado. Com a ajuda de alguns amigos, Chiquinho arrumou um emprego num depósito de materiais para construção situado em nosso bairro, trabalhando como motorista de uma caminhonete antiga (cabeça-de-cavalo), com partida a manivela e breque a varão.
Quando foi fazer sua primeira viagem – “puxando” areia de Guarulhos – Chiquinho, acompanhado de dois ajudantes, teve alguns problemas. Numa descida da avenida Amador Bueno da Veiga, na Penha, o caminhãozinho ficou sem breque e trombou com uma carrocinha de carvão, puxada por um burro. O carvão ficou todo espalhado pela rua, e somente o animal saiu ferido. Na volta, Chiquinho quase mata os dois ajudantes do coração: ele ia tirando “finas” de todos os carros; os outros motoristas que se desviassem da caminhonete.
Ao chegarem ao depósito, os dois ajudantes foram pedir a conta: “Ou nós, ou ele; esse rapazinho é um louco”, e contaram todas as façanhas por que passaram. O dono ficou apavorado, chegou perto do Chiquinho, tirou seu boné de trabalho e disse: “Vai ser motorista em Franco da Rocha”.

CHIQUINHO, MOTORISTA DO SAMDU


Tinoco:
- Apesar desses acontecimentos, Chiquinho não ficou frustrado. Apresentado por Teddy Vieira a um médico de sua amizade, ele conseguiu emprego no SAMDU (Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência), na Água Rasa, passando a trabalhar como motorista de ambulância.
No primeiro dia, Chiquinho foi escalado para buscar um doente no Ipiranga e transportá-lo ao Hospital São Cristóvão. Junto com ele iria um enfermeiro, que antes também era motorista da ambulância. Ele falou pro Chiquinho, pouco depois de parabenizá-lo pelo emprego: “Eu levo a ambulância até a casa do paciente. Na volta você dirige”. Chiquinho agradeceu os parabéns, e seguiram.
Ao retornarem, logo na saída, Chiquinho fez o doente gemer por ter partido muito bruscamente. Na primeira esquina tinha uma valeta e ele entrou com tudo. Resultado: o solavanco foi tão grande que o doente gritou, caiu da maca e quase morreu. O enfermeiro socorreu o homem, tomou o volante da ambulância e deixou Chiquinho a pé no Ipiranga, dizendo: “Você é um criminoso”, e saiu com o carro.

A PRIMEIRA GRAVAÇÃO: 1944


Tonico:
- Ainda morávamos na Vila Prudente, e o Capitão veio nos fazer uma visita, trazendo grandes novidades: “Eu estou aqui para trazer uma boa nova: o seu Ernane Dantas, diretor da Continental, ouviu vocês cantarem no programa ‘Arraial da Curva Torta’. Gostou muito e quer gravar com vocês. Eu tenho uma música muito bonitinha, um cateretê”. Era esta a música, de autoria de Capitão Furtado, Jaime Martins e Aimoré:

INVEIS DE ME AGRADECÊ
Cabocla, pra lhe agradar, já cumpri o meu dever
Fiz o que pude, até mais do que devia fazê,
Só pra ver se conseguia ser amado por você
Mas qual, você é ingrata, começou logo a dizê
Que a casa tinha defeito, inveis de me agradecê.

Falou mal do meu ranchinho, por ele ser de sapê
Então fiz sacrifício, gastei mesmo sem podê
Mandei fazer uma casa, bem ao gosto de você
Mas qual, você é ingrata, começou logo a dizê
Que a casa tinha defeito, inveis de me agradecê.

Por nunca ter conseguido ser amado por você
Eu já tenho imaginado ate´desaparecê
Será mais um sacrifício que eu ainda vou fazê
Mas se um dia for s’embora, só pra lhe satisfazê
Você talvez se lastime, inveis de me agradecê.

Aprendemos a música no mesmo dia e, na semana seguinte, fomos gravar o disco 78 rpm. Ensaiamos no estúdio com o Orlando Silveira na sanfona e o Ernane nos orientou: “Olha, tem um microfone só: vocês cantam e, ao terminarem os versos, saem para o conjunto entrar”. O conjunto era formado por Piraci, no violão, junto comigo; Tinoco, na viola, e Xixa, no cavaquinho. O Ernane alertou, ainda, que não poderíamos errar, pois, se isso ocorresse, estragaria a matriz de cera, impossibilitando a gravação.
Quando acendeu a luzinha vermelha, soltamos a voz em lá maior e, com a intensidade, estourou o microfone. Não teve conserto: ficamos apenas com uma face do disco; na outra saiu uma música humorística de Palmeira e Piraci: “Salada Internacional”.
Assim foi a nossa estréia em disco.

A BRONCA DO ERNANE


Tinoco:
- Levamos uma “ensaboada” do Ernane: “Vocês devem educar essas vozes, isso não é cantar, é berrar. Vão para uma escola de canto e, quando vocês tiverem com a voz macia, voltem para gravar”. Dessa forma, fomos estudar numa escola de música da Prefeitura, situada no porão do Teatro Municipal de São Paulo. Voltamos depois de seis meses, quando gravamos outras músicas.

OUTRAS GRAVAÇÕES E O PRIMEIRO LP


Tonico:
- Sertãozinho ficou sendo nosso secretário, e nós abrimos um escritório no largo do Paiçandu. Isto foi um assombro, uma renovação. “Onde já se viu dupla sertaneja com escritório”, falavam.
Tínhamos programas nas Associadas e depois na Rádio Nacional (hoje Rádio Globo) e na Rádio Bandeirantes. Os circos solicitavam muitos shows nossos, e, para atender a todos os compromissos, éramos obrigados a trabalhar de segunda a segunda.
Já estávamos vendo o horizonte do sucesso: nosso contrato na Continental foi renovado e passamos a ganhar um tostão por disco vendido, ao invés dos cinqüenta réis que recebíamos no contrato anterior.
Gravávamos compactos em 78 rpm até que um dia o Ernane chegou e disse: “Vamos fazer uma montagem de suas gravações 78 rpm em um LP. Será que o público sertanejo compra?” A montagem foi feita, surgindo o disco “Tonico e Tinoco com suas Modas Sertanejas”. Foi um grande sucesso – um disco que até hoje vende – constituindo-se no primeiro LP sertanejo lançado no País. Dessa data em diante os sertanejos não eram somente gravados em 78 rpm.

SOBRE GRAVADORAS


Tinoco:
- Naquela época, o mercado para as modas de viola era muito limitado. As gravadoras não se interessavam muito e apenas algumas abriam espaço. Assim, era difícil para as duplas iniciantes, pois cada uma das gravadoras já tinha seus líderes: Nhô Nardo e Cunha Júnior, na Continental; na Odeon, Serrinha e Caboclinho e na RCA, Raul Torres e Florêncio. 
Nós quebramos o tabu: depois que gravamos – com um estilo alto, inovador – o campo sertanejo foi cercado de interesse, abrindo caminho para outras duplas. Hoje, a música sertaneja está no lugar que ela merece: respeitada e com um grande público.

UMA CURIOSIDADE SOBRE GRAVAÇÕES


Tinoco:
- João Alves e seu cunhado formavam uma dupla sertaneja. Foram, certa vez, à gravadora e falaram para o seu Ernane: “Temos umas modas de viola muito boas pra incravá”. Ele respondeu: “Voltem daqui dez anos que nós gravaremos”. João Alves se despediu e, quando estava saindo, voltou e perguntou: “Daqui dez anos, quando a gente voltar pra incravá, é pra vir de manhã ou de tarde?” E seu Ernane falou: “À tarde”.
Numa tarde, depois de dez anos, eles voltaram e gravaram a moda “Tropeiro”, a mesma que regravamos posteriormente.

GRAVAÇÕES EM 78 RPM


Tinoco:
- A gravação dos discos 78 rpm obedecia ao seguinte processo: inicialmente era gravado um disco de cera que, após 24 horas de imersão num banho especial, possibilitava a gravação de um disco de cobre. Este, por sua vez, seria a matriz para a confecção dos discos.
No início de nossas gravações era utilizado somente um microfone, tanto para as vozes quanto para os instrumentos. Tempos depois, ao chegarmos no estúdio para a gravação de um novo disco, uma surpresa: dois microfones, um para a dupla e outro para o acompanhamento. O seu Ernane foi o responsável pela implantação dos dois canais, e nós, a primeira dupla a gravar pelo sistema.

HOJE, TUDO MODERNO


Tinoco:
- Agora está tudo mudado. Grava-se em até quarenta canais, dezenas de microfones; ouve-se a fita e, se ocorrer alguma falha, pode-se regravar muitas vezes. A utilização do play-back, na equalização da voz e no acompanhamento, também facilita muito o trabalho.
Naquela época, porém, tinha-se que ir “no peito” mesmo. As dificuldades eram imensas. O gênero sertanejo lutava sozinho, sem muito apoio das rádios. Muitas pessoas tinham vergonha de dizer que gostavam de nossa música: compravam o disco e diziam que era para a empregada.
Mas o que tem raiz não cai. Fomos lutando e, hoje, a música sertaneja está nos primeiros lugares e até os grã-finos a consomem. Vamos em frente, sertanejos, que o Brasil é nosso!

PROGRAMAS DE RÁDIO


Tinoco: -
Os programas de rádio também eram poucos. Vamos relembrar alguns: na Rádio Cruzeiro do Sul, “Manhãs na Roça”, de Chico Carretel; na Bandeirantes, os programas “Brasil Caboclo” e “Onde Canta o Sabiá”, com os saudosos Capitão Barduíno e Biguá, com a locução do Tio Nascim. Ainda na Bandeirantes, “Serra da Mantiqueira”, primeiramente com os Irmãos Mota e depois com Motinha e Nhá Fia. Na Rádio Cosmos, hoje Rádio América, programa com Nhô Nardo e Cunha Júnior; na Rádio Difusora, os programas “Alma Cabocla” e o já mencionado “Arraial da Curva Torta”, com o inesquecível Capitão Furtado.
Hoje todas as rádios possuem programas sertanejos, dedicando horas e horas do dia e da noite ao gênero; um exemplo disso é a Rádio Record.
Apesar de muitas duplas estarem fugindo da verdadeira música sertaneja, o Brasil é muito grande e o sol nasceu para todos.

OS SHOWS SERTANEJOS ERAM ESCASSOS


Tonico:
- Por volta de 1945, o mercado de trabalho ainda era pequeno. Havia muitos circos mas cada um deles mantinha uma companhia própria para os espetáculos. Quando alguém oferecia a apresentação de duplas sertanejas num circo, seu secretário dizia: “Caipira? Em meu circo não!”
Sertãozinho, que nos representava nos contatos, continuava lutando. Um dia fizemos um show no Grande Circo Umuarama, do Pinduca, e conseguimos a maior bilheteria da época.
Esse acontecimento foi o bastante para que todos os donos de circos contratassem duplas sertanejas para participarem de espetáculos.

AS DUPLAS DA ÉPOCA


Tinoco:
- Naquele tempo havia muitas duplas boas, originais. Por exemplo: Chiquinho e Chicão (Afeu  Bissoli), e depois Chiquinho e Zé Tapera. gravando alguns discos 78 rpm; Nhô Pai e Nhô Fio, Nhô Pai e Nhá Fia e Nhô Pai e Fiíco; Trio Brasil Moreno; Irmãs Castro; Serrinha, Caboclinho e Riellinho; Mariano e Caçula; Mandi e Sorocabinha.     
Do elenco do saudoso Cornélio Pires: Moreno e Moreninho, Nenete e Dorinho; Sulino e Marrueiro; Os Maracanãs; José Fortuna e Pitangueira; Zé Carreiro; Tião Carreiro e Pardinho; Nhô Nardo e Cunha Júnior; Torrinha e Canhotinho; Brinquinho e Brioso; Irmãs Galvão; Trio Mineiro, com o saudoso Bolinha; Trio Gaúcho, com o também saudoso Zulmiro.
Depois vieram Zico e Zéca; Vieira e Vieirinha; Liu e Léo; Cascatinha e Inhana, Nonô e Naná; Duo Guarujá; Marumby e Zé Béttio. Além das gravadoras já referidas, existiam editoras realizando boas gravações, que tinham como produtores as próprias duplas.

VALORIZANDO OS SHOWS


Tonico:
- Já estávamos famosos, fechando espetáculos, quando Nhô Lizo (caipira sabido) criou a “Noite da Caipirada”, que foi um grande sucesso.
No início nós participamos de sua troupe, mas depois saímos porque ele estava fazendo pouco caso do nosso trabalho.
Sempre éramos atração principal, terminando os espetáculos. Certa feita foi combinado um show para o Circo Navegante, que estava na Vila Alpina.
Morávamos no Cambuci. No dia marcado, almoçamos e saímos a pé, pois não tínhamos condição de viajar de ônibus. Quando chegamos em São Caetano, perguntamos pelo local e nos informaram: sigam por esta rua até o fim e já estão na Vila Alpina. Chegamos num local que tinha mesmo um circo, mas era o Cirquinho do Jeca Topa-Tudo. Então nos informaram que o circo que procurávamos estava em outra Vila Alpina, que ficava em Santo André.
Fomos para lá e quando chegamos já eram nove horas da noite. Fizemos o show, ganhando vinte mil-réis cada um, e voltamos de ônibus. Com a “grana” no bolso.

OS TRÊS BATUTAS DO SERTÃO


Tonico:
- Torres, Florêncio e Rielli, da Rádio Record, foram os pioneiros nas apresentações em circos. Sempre que seus shows eram anunciados o povão comparecia, dando valor aos sertanejos.
Nessa época, gravamos os sucessos “Chico Mineiro”, “Tristeza do Jéca” etc., e os donos de circos começaram a nos procurar. Fazíamos a divulgação através do programa “Arraial da Curva Torta”.
Também nesse período, os Três Batutas do Sertão pararam suas apresentações e nós, seguindo a sua trilha, fomos abrindo caminho para as demais duplas.
Apresentávamos dramas baseados em nossas músicas  mais conhecidas, sempre com grande sucesso. Todas as duplas copiaram o estilo, fazendo shows nos circos, com muito agrado.

NOSSOS SHOWS


Tonico:
- Piraci, sempre nos incentivando, recomendava como devíamos proceder no palco. “Quando vocês vão cantar em público” – dizia – “devem ser psicológicos. Conforme o público, percebam como deve ser dado o andamento do show. Sem muita conversa, devem deixar o público desejando mais, para pedir bis. Nunca fiquem no palco até esgotarem a atenção do público: isso não é bom para o artista.”
De platéia em platéia, fomos observando, aprendendo. Até hoje nunca desgostamos nosso público; onde vamos sempre temos boa acolhida.

NOVO ENCORDOAMENTO PARA VIOLA


Tonico:
- Já estávamos em boa situação quando compramos uma viola e um violão novos, marca Del Vecchio. As cordas ainda eram de carretel; com isso, a afinação era muito difícil: não casava bem o som da viola com o violão.
Então, inventamos um encordoamento para a viola: no lugar da toeira, colocamos uma corda ré e uma si de violão; no lugar do canotio, uma sol e uma mi (agudo); ao invés da turina, uma si encapada e uma mi (agudo) do violão-tenor; no lugar das primas, duas si de violão; no lugar das amarelinhas, duas mi (agudos).
Tinoco afinou a viola no cebolão com o violão em mi maior: foi um casamento maravilhoso.
Hoje as fábricas vendem esse mesmo encordoamento para viola. Portanto, os atuais encordoamentos são nossa criação: nasceram na viola branca, fazendo os carretéis desaparecerem.

FIM DO PROGRAMA “ARRAIAL DA CURVA TORTA” E OS CIRCOS


Tinoco:
- Capitão Furtado se despediu das Associadas, levando seu programa para outra emissora. No horário ficou Lulu Belencase comandando o “Festa na Roça”, junto com o Manuel Inocêncio. Continuou o mesmo esquema, os mesmos artistas, pois todos tinham contratos com a Rádio.
O mercado de trabalho nos circos estava ótimo: muitos shows para todas as duplas, conforme a categoria.
Assim era o ambiente artístico sertanejo em 1950. Somente em São Paulo existiam cerca de duzentos circos, com atrações variadas – um negócio muito rendoso. Os donos de circos oficializaram um lugar para seus encontros – o Café dos Artistas, na esquina da rua Dom José de Barros com a avenida São João – onde eram feitos os contatos.
Com o surgimento da televisão os circos e cinemas foram enfraquecendo, pois muitos artistas se transferiram para o novo veículo de comunicação.

O PRIMEIRO CARRO DE TONICO E TINOCO


Tinoco:
- Para atender nossos compromissos, compramos um carro do Zé Melado, que fazia dupla com o Chico Doce, por quinze contos de réis: cinco de entrada e dez depois de trinta dias.
Fizemos o pagamento inicial e começamos a usar o carro. Porém ele deu tantos problemas, tantos desgostos que, quando o Zé veio buscar o restante do pagamento, dissemos: “Olha, Zé, vamos perder os cinco que já demos, mas você pode levar o carro”. Zé Melado não aceitou: “Eu perco os dez e vocês podem ficar com o carro”.
Ficamos, mas, em pouco tempo, ele quase nos leva à falência.

INAUGURAÇÃO DO PRIMEIRO CANAL DE TELEVISÃO


Tinoco:
- Em 1950 era inaugurada a TV Tupi, canal 3, a primeira emissora de televisão do País. Para chamar a atenção do público seus representantes fizeram um desfile na cidade, levando as aparelhagens mais volumosas, com uma grande cobertura das Emissoras e Diários Associados. A divulgação era necessária porque nessa época poucas pessoas tinham aparelho de televisão.
O diretor artístico das Associadas era o seu Costa Lima, mais conhecido como o “Paizão dos Artistas”. Fomos convidados para participar da programação inicial. Nesse dia ele recomendou: “Vamos fazer bonito, porque este é o primeiro programa que vai ao ar”.
Cada um estava com seu script, já sabendo o que fazer. Nós, vestidos com calças brancas e camisas vermelhas axadrezadas, deveríamos sair de um lugar, previamente determinado, ir ponteando até uma porteira – num cenário tipicamente brasileiro – onde estava uma caboclinha. Ali, cantávamos para ela.
Na hora de o programa ir ao ar ocorreram problemas técnicos. Enquanto aguardávamos o reparo do equipamento, sentamos num toco preto que também fazia parte do cenário. Não fomos avisados, porém, que o toco estava pintado com piche.
Tudo certo para recomeçar, o contra-regra avisou: “Atenção, que agora são vocês”. Então, saímos ponteando a viola. A câmara nos focalizou bem nas costas: as calças brancas estavam borradas de piche. Ninguém riu, pois o público pensou que aquilo fazia parte da nossa apresentação.
Cantamos “Pé de Ipê” com todo sentimento:


Eu bem sei que adivinhava
Quando às vez eu te chamava
De muié sem coração
Minha voz assim queixosa,  }
Vancê é a mais formosa       }  (bis)
Das cabocras do sertão.       }

Certa vez tive um desejo
De provar o mer de um beijo
Da boquinha de vancê,
Lá no trio da baixada,    }
Pertinho da encruziada,  }  (bis)
Debaixo dum pé do ipê. }

Mas o destino é traiçoeiro
E me deixou na solidão
Foi-se embora pra cidade,   }
Me deixou triste saudade     }  (bis)
Neste pobre coração.           }

Quando eu passo a encruziada
Ainda avisto o pé do ipê
Ainda canta um passarinho,   }
Me faz alembrar sozinho       }  (bis)
Aquele dia com vancê.          }         

Quando terminou o programa, todos sorriram. Menos nós, que não achamos graça nenhuma. Afinal de contas, perdemos as calças novas, pois a mancha de piche não saiu.

TONICO APAIXONOU DE NOVO


Tonico:
– Éramos contratados exclusivos das Associadas, participando todos os domingos do programa “Festa na Roça”, que tinha no elenco a Florisbela e a Rosalina. Eu me apaixonei pela Florisbela – Estela, como a chamávamos -, que era irmã da Hebe Camargo.
Mas cadê coragem para falar com a moça?
Zé Pretinho, pandeirista do famoso conjunto Os Águias da Meia-Noite – grande amigo e o maior filante de cigarros de todos os tempos – era muito conhecido da família dela. Assim, solicitei que ele sondasse o terreno e, em troca, eu pagaria um almoço para ele todos os domingos lá no Jordão, o restaurante da Rádio. Tinha um “prato feito” por um cruzeiro e um “prato especial” por um cruzeiro e cinqüenta; tinha ainda o “almoço de primeira”, o “AP”, que era o prato mais completo, com arroz, feijão, picadinho, um ovo, salada e, na sobremesa, um pedaço de marmelada. Zé Pretinho exigiu o último, que era mais caro, e ainda por cima uma cervejinha, para ser o portador de meus bilhetes para a Estela.
E foram muitos bilhetes, e a resposta nunca vinha. Eu perguntava pro Zé Pretinho sobre a demora e ele dizia: “Calma, não se precipite: o que é bom é difícil”.
Depois de uns meses, ela ficou noiva com  outro. Falei pro Zé Pretinho: “Como você explica isso? Estou muito magoado com você”. Ele respondeu: “Mais do que eu, não! Agora eu fiquei sem meu almoço aos domingos!”
Jordão, dono do restaurante, ouvindo a nossa conversa, perguntou ao Zé se agora ele ia levar marmita. “Estou de regime”, ele respondeu.

CINE PARATODOS


Tonico:
- No cine Paratodos estava passando um filme, “Moleque Tião”, com o Grande Otelo. Eu e o Tinoco resolvemos assisti-lo; fomos e pagamos dois cruzeiros de entrada.
Nem sabíamos o que era sessão corrida. Depois de poucos instantes que havíamos entrado no cinema, as luzes se acenderam: muita gente começou a sair e outros permaneceram sentados. Seguindo a maioria, nós também saímos.
Do lado de fora, percebemos que a sessão ia continuar. De repente bateram o gongo e foram fechando a porta. Quisemos atravessar a borboleta e o porteiro, muito bruto, nos deu um safanão e disse: “Sumam daqui, seus malandros!” Ainda tentamos explicar, mas ele ameaçou: “Vão embora senão eu chamo a Polícia”.
Chegamos em casa cedo e a mãe perguntou: “Já foram ao cinema! Voltaram tão cedo...”, então nós argumentamos que aos sábados os filmes eram curtos mesmo.
Para não perder o sábado, fomos até a rua Ana Néri, na casa de uns amigos – os Cabrera – e ouvimos o sucesso da época, “Manolita”, cantado por Osni Silva.

PROGRAMAS AO VIVO


Tonico:
– As rádios, na época, tinham seus casts exclusivos: artistas, músicos, funcionários, todos com seus contratos. Cada um em seu setor, com horários para ensaios e programas bem determinados.
Elas constituíam a maior atração para todos: no ar o dia inteiro, com programas de auditório variados e programas nos bairros, aos domingos, sempre ao vivo.
Todos ganhavam o suficiente para viver, ao contrário de hoje, em que a rádio é um “bico” para os artistas.
Na Rádio Nacional, onde nasceu o “Beira da Tuia”, fazíamos o programa ao vivo. Num dia, o auditório estava ocupado com um ensaio do PRK-30, de Lauro Borges e Castro Barbosa. Então puxamos os fios do microfone para fora e começamos a transmitir o programa do corredor. Odilon Araújo, que era o locutor, perguntou: “De onde o programa está sendo transmitido?” Tinoco falou: “Hoje o programa está sendo transmitido da beira da tuia”. E assim surgiu o nome.

AS PRIMEIRAS VIAGENS EM CIRCOS PARA O INTERIOR


Tonico:
- Íamos fazer um show em Porto Ferreira, no Circo Berimbau, que tinha o pano todo rasgado, elenco desfalcado; enfim, muito pobre. Para irmos, pegamos o trem em Campinas, fizemos baldeação pela Mojiana e, em Nova Odessa, tinha um ramal até Piracicaba e outro até São Pedro.
Quando o trem parou, Tinoco desceu do vagão e foi dar uma volta pela estação. Para passar o tempo, entrou no trem que ia para São Pedro. De repente, o trem em que estávamos – eu e o Sertãozinho -, que ia para Ribeirão Preto, deu a partida: Tinoco ficou e, com ele, as nossas passagens.
Na outra estação, quando o chefe do trem passava recolhendo as passagens, nós contamos nosso caso. Ele não acreditou na história e insistiu que queria ver as passagens. Sertãozinho quis argumentar dizendo que era secretário da dupla Tonico e Tinoco, que íamos fazer um show num circo etc., e aí piorou as coisas. “Então vocês vão ser presos em Porto Ferreira – disse o chefe do trem -, porque todos os artistas são vagabundos, principalmente os de circo”.                  
Tinoco, em Nova Odessa, pegou carona num caminhão de leite e chegou em Porto Ferreira. Nós já estávamos detidos, mas quando o Tinoco mostrou as passagens para o chefe, ele disse: “Então está tudo bem, podem ir embora”. Sertãozinho respondeu: “Tudo bem para o senhor, mas para mim não”, e cobriu o chefe de tapas e pernadas, fazendo seu boné voar longe. Ele deu partida no trem e foi embora sem boné mesmo.

PRIMEIRA VIAGEM DE AVIÃO


Tinoco:
- Relembrando a primeira viagem de avião. Como trio, Tonico, Tinoco e Zezinho, fomos contratados pela família Mendonça, fundadores da cidade de Andradina, para inaugurar a rádio local.
Viajamos, pela primeira vez na vida, num avião de propriedade do seu Moura Andrade, com capacidade para cinco pessoas. Para nós era um verdadeiro conto de fadas.
Quando íamos passando por Bauru, deu pane no motor. Contudo, para nós estava tudo bem, tudo era novidade. O avião foi obrigado a fazer uma aterrissagem forçada. Em seguida vieram uns mecânicos, abriram o motor e, depois de seis horas de trabalho, terminaram. Perguntamos, então: “Tudo bem, podemos seguir?” Eles responderam? “Arrisquem...” Chegamos em Andradina com o motor falhando, fizemos três shows e ganhamos duzentos mil-réis. Êta tempo bom!

UMA CURIOSIDADE DAS ANDANÇAS


Tinoco:
- Esta história ficamos sabendo durante as nossas andanças.
Uma dupla foi cantar num circo e dirigiu uns gracejos para a mulher do palhaço, que era o dono do circo. A mulher contou ao marido, uma pessoa muito explosiva e, enquanto a dupla cantava, ele pegou um cacete e ficou na coxia, atrás do palco, dizendo: “Terminem logo de cantar porque vocês dois vão apanhar para aprender a respeitar a mulher do próximo”.
A dupla cantou cinco modas, dez modas, vinte modas, e o homem continuava esperando. Depois de duas horas de show – com o marido ainda esperando na coxia – eles anunciaram o fim do espetáculo, falando: “Nós somos tão populares que vamos sair junto com vocês”; e saíram pela frente, no meio do povo.
Até hoje o marido procura a dupla para acertar as contas.

FESTA NA CIDADE


Tinoco:
- Estávamos com muitos discos na praça e viajando sempre de trem para as apresentações. Contudo, não dava para viajar de primeira classe.
As promoções dos circos do interior eram sempre grandes. Vinham esperar os artistas na estação, com seus veículos de propaganda. Era uma festa na cidade.
Dessa forma, quando viajávamos, íamos de segunda classe e descíamos pelos vagões de primeira.

INAUGURAÇÃO DO AEROPORTO DE LONDRINA


Tinoco:
- Tínhamos inaugurado o aeroporto de Londrina, numa apresentação junto com o Douglas, da Real. E, nesse dia mesmo, fomos contratados para um show que se realizaria depois, também na cidade, numa promoção do Circo Sinval.
 No dia da apresentação, o Sinval organizou uma caravana para nos esperar no aeroporto: quando o avião chegou, soltaram muitos fogos, com a bandinha do circo tocando um dobrado.
No mesmo avião em que viemos estavam uns deputados, que iriam fazer uma conferência em Londrina. Quando desceram do avião, conosco, ficaram acenando ao povão da caravana e dizendo: “Nosso cartaz aqui no Paraná está ótimo! Vejam a recepção que estão dando pra nós!” Ao descermos, o dono do circo nos cumprimentou e seguimos com a caravana para a cidade.
Os políticos ficaram sozinhos, sem saber o que fazer ou dizer.
Acontecimentos como este foram muitos...

UM MILAGRE


Tonico:
- Em 1961, afastei-me do rádio para tratamento de saúde. Enquanto isso, a nossa programação era feita pelo Tinoco e pelo Chiquinho, que, na época, era o responsável pela organização dos shows. Durante três anos, até a minha volta, os programas eram gravados, utilizando-se apenas nossos discos.
No período em que permaneci adoentado, tive uma internação num hospital de Campos de Jordão para uma cirurgia delicada nos pulmões. O médico, o doutor Rady de Queiroz, falou: “Você vai ficar bom, mas não poderá cantar nunca mais”.
Tinoco, na Rádio Nacional, deu o endereço da fazendinha onde eu convalescia da doença, e as fãs e os amigos escreviam e faziam preces para a minha cura. Os pedidos foram ouvidos por Deus, e eu voltei com a voz melhor que antes. Como agradecimento, construímos uma capela para Nossa Senhora Aparecida, na Vila Diva, onde muitos devotos já alcançaram milagres.

CURIOSIDADE MILAGROSA


Tonico:
- Na rodovia Washington Luís, vínhamos voltando, numa noite chuvosa, de um show que havíamos feito em Araraquara. Quando chegamos perto de Ibaté, o carro parou atravessado na pista, impedindo a passagem de carros e caminhões que vinham atrás. Não tinha jeito de fazer o carro pegar. Os caminhoneiros buzinavam, davam sinais de luz, e continuávamos sem poder sair.
Como chovia intensamente e escurecera muito, resolvemos ficar dentro do carro até o amanhecer. Quando o dia clareou, qual não foi a nossa surpresa! Tinoco deu a partida e o carro pegou imediatamente, mas, cem metros à frente, tinha caído uma ponte por causa da forte chuva.
Assim, agradecemos a Deus por termos ajudado a salvar muitas vidas. Como essa, muitas coisas boas ocorreram em nossas vidas.

CURIOSIDADE DOS PRIMEIROS SHOWS


Tonico:
- Conhecemos Antônio Paulino Vieira e sua família quando, certa vez, ele veio nos visitar no programa que fazíamos na Rádio Difusora. Na ocasião ele nos contratou para um show em um cinema de Itajobi, onde também conseguimos outros contratos para cantarmos em Ibirá, Novo Horizonte e Catanduva, cidades da mesma região.
Durante essa temporada ficamos instalados na Fazenda Vieira. Como não tínhamos muita prática de excursões, levamos poucas roupas, e logo ficamos com poucas peças limpas. Um dia, fomos lavar algumas delas no rio, e a cueca do Tinoco rolou rio abaixo. Resultado: ele terminou a excursão sem ceroula mesmo.
Antônio Paulino Vieira era um grande fabricador de viola xadrez e nós ganhamos uma dele. Tempos depois, Vieira e Vieirinha – nossos afilhados – vieram para São Paulo; em seguida, também seus primos, Zico e Zéca, e depois Liu e Léo, todos conservando até hoje as suas origens.

PRIMEIRO “CANO” DE EMPRESÁRIOS


Tonico:
- Um empresário de Presidente Prudente nos contratou para três shows. Já éramos muito conhecidos e “Chico Mineiro”, também nessa época, estava fazendo bastante sucesso.
Ficamos hospedados num hotel perto da estação e todas as despesas corriam por conta do empresário.         
Ao final do último show fomos procurar o empresário para o recebimento e o cara-de-pau tinha sumido com todo o dinheiro.
Quando íamos saindo do hotel, o dono impediu nossa partida segurando as violas. Dinheiro nós não tínhamos e as violas iriam ficar empenhadas por conta da dívida. Tivemos de ficar trabalhando no hotel até saldar a dívida e poder resgatar as violas.

JOVEM GUARDA


Tinoco:
- Na década de 60 surgiu a Jovem Guarda, com Roberto Carlos, seu “Calhambeque” e outras músicas. O estilo foi uma loucura entre os jovens, pois até então a juventude não tinha definições em termos musicais.
Guitarras elétricas estridentes, baterias, contrabaixos – todo aquele som ensurdecedor – provocou um alvoroço: o negócio era deixar o cabelo e a barba crescerem, mascar chicletes, falar gíria. Logo em seguida vieram os hippies, com suas idéias, costumes e gírias.
O espaço nas rádios para as duplas sertanejas começou a diminuir: era só música jovem, principalmente no interior, onde os discotecários eram muito novos.
Os diretores da gravadora Chantecler, com a qual tínhamos contrato, falaram: “Nas próximas gravações que vocês fizerem, vão ter de modificar o estilo ou então gravar as modas sertanejas com letras jovens e guitarras elétricas, pois os tempos mudaram e é isso que está vendendo”. Nós dissemos: “Não aceitamos nenhuma das propostas”. Eles pontificaram: “Então vocês não vão gravar mais”. Retrucamos: “Então vamos rescindir o contrato”.
Ficamos dois anos sem gravar. Nesse meio tempo, porém, o estilo jovem foi enfraquecendo devido às centenas de conjuntos e compositores que faziam letras e músicas ruins, que “avacalharam” o gênero.
O povo deu um “chega pra lá” nesse tipo de música e nós voltamos a gravar, desta feita na Continental: fizemos “Brasil Caboclo”, que é sucesso até hoje e que consta do LP “Data Feliz”.
Mais uma vez ficou comprovado que a música original, de raiz, permanece, e as outras – fabricadas – desaparecem.

ROBERTO CARLOS VALORIZOU OS SHOWS


Tinoco:
- Entretanto, apesar de tudo, restou um saldo positivo: antes da Jovem Guarda, os shows eram pouco valorizados, mas depois a coisa melhorou. Isso porque Roberto Carlos cobrava seus shows a um preço alto, e os outros artistas, mesmo os de outros gêneros, começaram a acompanhar a tabela.
Além disso, com a vitória da música “Disparada”, no Festival da Record de 1966, o gênero sertanejo passou a ser muito considerado, melhorando bastante a situação dos artistas.

MIRAMAR E MIRAÍ, UMA DUPLA SULINA


Tinoco
: - No Sul, nossas músicas eram quase desconhecidas, pois as rádios só executavam as tradicionais canções gauchescas. Depois de uma excursão que fizemos por lá, junto com Miramar e Miraí – sempre com muitos aplausos -, os gaúchos começaram a apreciar o nosso trabalho. Nós, particularmente, gostamos muito da platéia gaúcha, e em todos os LPs incluímos músicas gauchescas para homenageá-la.
Em 1981, a cidade de Canela (RS) foi escolhida para a “Convenção do Disco”, que recebeu todos os representantes de gravadoras para discutir assuntos gerais do mercado fonográfico, incluindo a questão dos direitos autorais para o artista brasileiro de todas as classes. Esse acontecimento teve cobertura da imprensa falada e escrita: do Sul para todo o Brasil.                             

RÁDIO TUPI

Tonico: - A Rádio Tupi tinha a melhor programação do País, contratando, inclusive, artistas do plano internacional. Hugo del Carril, Gregório Barrios no e, entre os artistas brasileiros, Vicente Celestino, Orlando Silva, Os Anjos do Inferno, Alvarenga e Ranchinho e outros faziam parte de seu cast.
As melhores novelas também estavam na Tupi, como “Filhos de Ninguém”, cujo elenco era dos melhores. Havia ainda programas como “Cadeira de Barbeiro”, com Aluísio Silva, Simplício, Chocolate e o saudoso Manuel da Nóbrega; “Conversa do Meio-dia”, com Walter Forster e “Crônica do Dia”, com Ribeiro Filho, Machadinho, Xisto Gusi e Maria Vidaç.
Em 1944, fomos inaugurar as ondas curtas da Rádio Guarany de Belo Horizonte, da rede das Associadas. Foi fretado um avião que levou os artistas da Tupi – Mazzaropi, Osni Silva, Arnaldo Pescuma, Lolita Rodrigues, Hebe Camargo e outros – sob a direção artística de Walter Forster.
Durante o show todos os artistas foram muito aplaudidos. Quando anunciaram o nosso nome, o povo aplaudiu de pé. O script determinava somente cinco minutos para cada um, mas nós cantamos durante meia hora: o povo não nos deixava sair.
A direção ficou surpresa com o ocorrido, pois não sabia o valor da dupla perante o público.

INAUGURAÇÃO DE CANAL DE TV EM BAURU

Tonico: - Em todos os shows da Rádio, nós estávamos escalados. Isso era ótimo, porém não ganhávamos nada porque já estava previsto em contrato.
Certa vez fomos inaugurar o canal de TV de Bauru, na estréia de Moacyr Franco como humorista e cantor: ele se vestiu de mendigo, cantou “Me dá um dinheiro aí” e agradou muito. Nós encerramos o show.
Como essa, foram muitas as apresentações para a Rádio. Cachê? Por conta do contrato.

“A VOZ SIMPLES DO SERTÃO, CANTANDO PARA A CIDADE GRANDE”

Tonico: - “Rádio Tupi, Rádio Difusora, as mais queridas emissoras de São Paulo”. Assim eram conhecidas as Associadas, que tinham artistas famosos, assim como a Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
O saudoso José Paniguel, toda vez que ia nos anunciar – tendo por fundo “Tristeza do Jeca”, o prefixo do programa – dizia: “A Rádio Tupi, neste momento, apresenta para vocês a voz simples do sertão, cantando para a cidade grande: TONICO E TINOCO, a Dupla Coração do Brasil”. No primeiro programa cantamos a moda “Cabocla”.

COSTA LIMA NA RÁDIO NACIONAL DE SÃO PAULO

Tonico: - Victor Costa comprou a Rádio Excelsior – trocando seu prefixo para Rádio Nacional de São Paulo – transferindo a Excelsior para outra freqüência. A coordenação das rádios ficou com a Organização Victor Costa. Sua idéia era montar uma Rádio Nacional em cada Estado do País.
Ele transformou-se em uma “pedrinha no sapato” das Associadas, pois constituiu-se num forte concorrente.
As Associadas, que não eram mais absolutas no mercado, se apressaram em renovar o contrato do pessoal. Contudo, não conseguiram segurar todo mundo: Costa Lima, o diretor artístico, foi para a Rádio Nacional e, com ele, quase todo o cast. Inclusive nós.

RÁDIO BANDEIRANTES: NOVO CONTRATO


Tonico:
- Depois de doze anos na Rádio Nacional, entramos para o elenco sertanejo da Bandeirantes – por intermédio do Tio Nascim -, liderando a programação do gênero.
Os programas que fazíamos eram: “Brasil Caboclo”, às cinco horas; “Beira da Tuia”, às dezoito horas, e, ainda, na Rádio São Paulo, às dezessete horas. Em todas as emissoras só encontramos amigos.

SUBSTITUTOS PARA TONICO E TINOCO


Tonico:
- Um dia, conversando com o Tinoco, resolvemos fazer um concurso para ver se aparecia uma dupla que se assemelhasse à nossa. O prêmio seria o contrato na Rádio e na Continental para gravar discos.
Um total de 180 duplas participaram, classificando-se doze para gravar um LP – uma faixa para cada uma. Dessas finalistas, ainda, o seu Rodrigues escolheria aquela que iria nos substituir. Depois de algum tempo ele falou: “Não encontramos nenhuma dupla que se aproximasse a vocês. Portanto, Tonico e Tinoco terão de cantar muito, alegrando o nosso Brasil. É a vontade de Deus”.

OS EMPRESÁRIOS DAQUELE TEMPO


Tonico:
- Eram poucos os empresários de shows, pois não tínhamos muito trabalho, nem no circo. O nosso, naquele tempo, era o Tamburro, que também empresariava Raul Torres, Florêncio e Rielli. O Januário de Oliveira cuidava somente de shows em circos e o Chiquinho gordo era uma espécie de relações públicas.
Nessa época, fizemos muitos shows com Mário Zan, o sanfoneiro mais popular do Brasil. Principalmente depois que ele gravou o “Quarto Centenário”, ninguém mais o segurou, tanto na sanfona quanto na paquera. É verdade: ele trocava de mulher assim como se troca de meia.
Para seus shows ele arrumou um senhor aposentado – seu Arcanjo -, tocador de baixo-tuba, que vinha da Banda Militar. Eram muito solicitados para fazer shows particulares.
Certo dia foram contratados para se apresentarem numa residência da Avenida Paulista, na festa de aniversário de um ricaço. Quando terminaram o show e se despediram, o seu Arcanjo aproveitou para levar uns doces, bolos etc., guardando dentro da tuba.
Contudo, quando estavam quase saindo, o dono da casa solicitou para que tocassem mais uma música. O Arcanjo não queria tocar, mas não teve jeito, porque o Mário Zan já havia começado os primeiros acordes. Enquanto o Mário seguia tocando, o Arcanjo ficava soprando, e não saía som nenhum.
Por fim, ele jogou a tuba no chão, fez cara de zangado e disse: “Quem foi o engraçadinho que fez aquela brincadeira de mau gosto, enfiando doces no instrumento?”

UMA CURIOSIDADE


Tonico:
- Mário Zan, voltando de um show que fizera em Jundiaí, chegou com o seu automóvel todo amassado. Perguntamos o que tinha acontecido e ele respondeu: “Matei o boi”. Ficamos muitos alegres com a resposta, pois “matar o boi” era uma gíria da época que significava a realização de um bom espetáculo, uma vitória. Queríamos saber detalhes e, dessa forma, indagamos se o carro amassado tinha sido resultado da aglomeração de fãs. Então, ele disse: “Não foi glomerazon. Eu dei mesmo foi uma trombada num boi e ele morreu na estrada”.

NOVA SAFRA DE VIOLEIROS


Tinoco:
- Na década de 60, surgiu uma nova safra de violeiros. Dentre eles, Milionário e José Rico, trazendo um estilo mexicano: canções rancheiras, músicas de fossa, sempre cantando oitavado. Esse estilo influenciou a maioria das duplas, empolgando os programadores. Os compositores e duplas se multiplicaram, surgindo no mercado muitos trabalhos ruins que quase sufocaram, com seu modernismo, a música de raiz. Entretanto, o povo é o eterno juiz e hoje a viola ainda comanda a preferência.

GRANDES MOMENTOS DE TONICO E TINOCO


Tonico:
- Os grandes momentos foram muitos e sempre se renovam; a cada show uma nova emoção. Fizemos milhares de espetáculos por esse Brasil afora: em circos, teatros, ginásios e exposições agropecuárias, além das programações em rádio e televisão.
Contudo, o que mais marcou em nossa carreira foi a apresentação que realizamos no Teatro Municipal de São Paulo. Quando fomos solicitar uma data para a utilização do Teatro, seu diretor não queria cedê-lo. Disse: “Onde já se viu viola no Municipal? Um palco em que se apresentaram os maiores artistas do mundo, as melhores orquestras sinfônicas de todos os tempos!” Apesar de sua relutância, nós insistimos. A muito custo, ele olhou no calendário e falou: “Vou marcar para vocês numa sexta-feira, depois de um concerto que só termina às 21 horas”.
Quando chegou o dia, 6 de julho de 1979, aconteceu este que foi o nosso maior show, e também o maior espetáculo da história do Teatro Municipal. O Teatro tem capacidade para mil e setecentas pessoas. Nesse dia, entraram mais de duas mil e quinhentas, enquanto outras mil pessoas ficaram do lado de fora por falta absoluta de espaço, foi inesquecível.
Tínhamos autorização para realizarmos uma apresentação de apenas uma hora de duração. O show iniciou-se somente às 22 horas e, por insistência do público, ficamos até 1 hora da manhã.
Ao final, recebemos os maiores aplausos, nós e todo o elenco, formado pelo organizador, Luiz Carlos, e pelo Chiquinho, Sérgio Reis, Cacique e Pajé e por uma orquestra de quarenta violeiros, sob o comando de Marino Cafundó, de Osasco. Na despedida, todo mundo cantando “Luar do Sertão”, com muita emoção.

SHOW NA UD, NO IBIRAPUERA


Tinoco:
- Fizemos uma apresentação no Ibirapuera, durante a Feira da UD – Utilidades Domésticas -, que incluía a história de um casamento caipira da Rita Lee com um clarinetista duma bandinha do interior. Narramos o acontecimento, todo musicado, apresentando durante quinze dias, com muito sucesso.

PALESTRA NA USP (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO)


Tinoco:
- Fomos fazer um show e uma palestra na USP: cantando e falando sobre a música sertaneja para mais de duzentos alunos. Esse acontecimento foi solicitado porque os estudantes estavam fazendo um estudo sobre o nosso gênero musical.

MARACANÃZINHO


Tinoco
: - Todos diziam: os cariocas não gostam de viola, eles são mais do samba etc. Fizemos a “Noite da Viola” no Maracanãzinho já esperando o fracasso. fomos surpreendidos: uma platéia de mais de vinte mil pessoas, aplaudindo e cantando de pé todas as nossas músicas.
Parabéns, cariocas: mostraram toda a sua brasilidade!
Hoje, todas as emissoras cariocas mantêm programas sertanejos.

OS FILMES


Tinoco:
- Fizemos seis filmes, todos regionais-sertanejos:
1º filme: - Lá no Meu Sertão, de nossa produção, foi filmado em Descalvado-SP;
2º filme: - Obrigado a Matar!, enredo baseado no Chico Mineiro, filmado em Bofete-SP;
3º filme: - Luar do Sertão, co-produção, filmado na cidade de Itu-SP;
4º filme: - A Marca da Ferradura, co-produção, filmado na Aldeinha de Carapicuíba-SP;
5º filme: - Os Três Justiceiros, co-produção, filmado na Aldeinha de Carapicuíba-SP;
6º filme: - Menino Jornaleiro, co-produção, filmado em Moji das Cruzes-SP.

PEÇAS TEATRAIS


Tinoco:
- Em nosso repertório constam 25 peças teatrais e duas comédias, que representamos em circos, teatros e ginásios.

LPs GRAVADOS ATÉ HOJE

Tinoco: - Gravamos 61 LPs e 170 discos 78 rpm, num total de 1052 músicas.

DIA DO SERTANEJO


Tinoco
: - Numa apresentação na Rádio Aparecida, em Aparecida do Norte, da qual participaram vários artistas, realizada num dia três de maio, sugerimos que todos os anos nesta data se reunissem os violeiros do País, instituindo o “Dia do Sertanejo”. Os padres aplaudiram a idéia, os violeiros também e, assim, todos os anos se realiza a maior festa sertaneja, cantando e louvando Nossa Senhora.

SHOW PARA JESUS CRISTO


Tinoco:
- Em nossas andanças por Santa Catarina, fomos fazer um show beneficente na cidade de Braço do Norte, para angariar fundos para a reforma da Igreja Matriz da localidade. O padre reservou um galpão, mas na hora do espetáculo apareceram mais de três mil pessoas e aquele espaço não comportava tanta gente.
Então, o padre resolveu tirar todos os santos do altar, transformando-o num palco. Com a imagem de Jesus, cantamos na hora do show para quatro mil pessoas. No encerramento, todo o povo cantando “Aparecida do Norte” e depois rezando a ave-maria.

MUSEU DA IMAGEM E DO SOM


Tinoco:
- Fomos os primeiros artistas a gravar um depoimento no Museu da Imagem e do Som. Durante cinco horas falamos sobre o nosso trabalho para dez jornalistas da imprensa falada, escrita e televisionada.
Outro depoimento foi no Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte; em três horas de gravação, falamos sobre a nossa vida e sobre o gênero sertanejo. Nesta oportunidade, perguntaram: “Como vocês vêem a música sertaneja que apresentam roupagens novas, com acompanhamento eletrônico?” Respondemos, então, que não éramos contra a música moderna que utiliza instrumentos eletrônicos. Para conjuntos e orquestras – falamos – fica muito bonito, mas modas sertanejas têm que ser com viola mesmo.

DUPLA DE TRÊS GERAÇÕES


Tonico:
- Somos a dupla de três ou quatro gerações. Prova disso é que, numa apresentação em Belo Horizonte, estava uma família com quatro gerações, assistindo a Tonico e Tinoco.
Hoje agradecemos a Deus por este dom, possibilitando que pudéssemos cantar juntos durante quarenta anos. Neste período, surgiram muitas duplas, cantores sendo influenciados por nossas músicas, por nosso estilo, seguindo nossas origens. Cada pessoa tem a sua história relacionada à nossa vida profissional; cada fã tem suas recordações, as saudades de quem ouvia junto nossas músicas e que hoje está distante, talvez para não mais voltar.
Todos têm seu passado ouvindo as músicas sertanejas. Buscamos alegrar os corações com a história de uma vida real, que muitas vezes ficou no esquecimento. Sim, alegrando com a beleza simples como a natureza, singela como o cantar dos passarinhos, romântica como o perfume das flores, pura como o sertão. Ouvindo o chuá dos rios e cascatas, com a simplicidade do som da viola cabocla, levando nossas mensagens, pois somos a DUPLA CORAÇÃO DO BRASIL.

 

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